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dezembro 2001



LITERATURA

Um Nobel para um renegado

Naipaul identifica-se completamente com os valores britânicos, como se renegasse seu percurso e tivesse rompido todas as ligações com seu passado – nasceu em Trinidad, em 1932, numa família indiana imigrante, de alta casta, mas pobre


Pascale Casanova

Com algumas exceções, o comitê Nobel conseguiu não ceder às instâncias e às pressões diplomáticas, fossem elas nacionais, européias ou internacionais

O prêmio Nobel de Literatura, atribuído em 10 de dezembro, em Estocolmo, a Vidiadhar Surajprasad Naipaul, é um pouco como o prêmio Nobel da Paz outorgado há alguns anos a Henry Kissinger. O desmoronamento de um mito: o de uma assembléia esclarecida, esclarecedora, corajosa, independente e intrépida, indicando os “clássicos da modernidade”, no norte da Europa, nesse pequeno país que é uma espécie de Suíça da literatura, com o domínio e a segurança de que só são capazes os grandes especialistas.

Desde 1945, a Academia sueca nunca deixou de apresentar entre os seus laureados os que são chamados por ela de “pioneiros da arte literária1”: T.S. Eliot, por exemplo, foi eleito em 1948 “por ter renovado de modo notável a poesia contemporânea”; William Faulkner, distinguido em 1950, quando é pouco conhecido do grande público e praticamente desconhecido em seu país, porque, em Estocolmo, se vê nele “o maior representante da arte experimental de nosso século no campo épico”; Samuel Beckett recebeu o prêmio em 1969; Claude Simon foi eleito em 1985 etc.

Prêmio às obras “resistentes”

Essa atividade crítica magistral, que privilegia quase sempre uma espécie de vanguarda internacional, não fazendo concessões aos modos romanescos nem à fama rápida e mal adquirida, foi sempre associada a uma independência reivindicada em relação aos poderes políticos. Com algumas exceções, o comitê Nobel conseguiu não ceder às instâncias e às pressões diplomáticas, fossem elas nacionais, européias ou internacionais. Sempre reivindicou a adoção de critérios exclusivamente literários, mantendo tacitamente uma espécie de linha “progressista”.

O Nobel atribuído a V.S. Naipaul é um contra-senso e uma traição ao próprio espírito desse prêmio, tanto no plano literário como político

O prêmio atribuído a Gao Xingjian em 2000 é a prova evidente disso, distinguindo um escritor chinês dissidente, e naturalizado francês, o que só poderia desagradar as autoridades políticas de Pequim. Em outras palavras, a Academia sueca se recusa a submeter-se às manipulações baixas da diplomacia política (uma crítica que lhe é injustamente feita muitas vezes) para só se ater às tomadas de posição literárias e políticas das obras e dos próprios autores. É nesse sentido que privilegiou, até agora, as posturas dominadas e “resistentes”, como as de Derek Walcott, poeta negro do Caribe de língua inglesa (1992); Toni Morrison, romancista negra norte-americana (1993); Kenzaburô Ôé, romancista japonês engajado (1994); Dario Fo, teatrólogo italiano subversivo (1997); e Günter Grass (1999).

Defensor da “grandeza” britânica

O Nobel atribuído a V.S. Naipaul é, portanto, uma contradição flagrante com a história e a tradição da maior distinção literária do mundo. É um contra-senso e uma traição ao próprio espírito desse prêmio, tanto no plano literário como político. No plano literário, o escritor eleito este ano nunca inventou coisa alguma. Manteve-se na estrita e bem comportada reprodução dos modelos narrativos herdados do século XIX. Distinguiu-se por um conformismo literário nunca desmentido. Produziu mais livros jornalísticos – “pesquisas” de campo que supostamente descrevem com “objetividade” a situação política e religiosa de diversos países do Terceiro Mundo –que qualquer outro escritor contemporâneo. Está com um atraso de cerca de 150 anos em relação às últimas inovações em matéria de estética literária (seu escritor preferido é Balzac2) e é evidente que ele denuncia a obra de James Joyce como “incompreensível”. Seu estilo (o academicismo) está para a literatura assim como suas posições públicas (um conservadorismo nacionalista) estão para a política.

Na realidade, Naipaul identifica-se completamente com os valores britânicos, dedicando-se com afinco à defesa e ilustração de sua grandeza. Como se renegasse seu percurso e tivesse rompido todas as ligações com seu passado – nasceu em Trinidad, em 1932, numa família indiana imigrante, de alta casta, mas pobre. Foi para Londres com uma bolsa de estudos em 1950. Naipaul se vê como um escritor inglês, e seu enobrecimento, em 1991, veio de alguma forma completar uma assimilação devotada.

Conservador e nacionalista

Naipaul está com um atraso de cerca de 150 anos em relação às últimas inovações em matéria de estética literária (seu escritor preferido é Balzac)

Em L’Enigme de l’Arrivée3, ele recorda um “segundo nascimento”, quando se instalou em Wiltshire, descrevendo a beleza nostálgica das paisagens, das estações, das flores e, principalmente, dos solares ingleses, provas do antigo poderio britânico. Essa vontade quase patética de querer fazer esquecer a origem e a cor de pele explicam, por um lado, sua adesão aos valores dominantes e seu desprezo simétrico por todos aqueles com quem não quer ser confundido: trabalhadores imigrantes e habitantes dos países pobres. Um de seus discursos famosos – pronunciado no Manhattan Institute, de Nova York, em 1991 –, uma proclamação pública da rejeição ostensiva de suas origens e afirmação de sua renegação – se intitula simplesmente “Nossa civilização universal4”, cada uma dessas três palavras dando a medida exata de sua identificação ingênua com o Ocidente.

Por uma espécie de inversão característica dos imigrantes hiperintegrados, Sir V.S. Naipaul adota, portanto, o ponto de vista mais depreciativo em relação aos habitantes dos países do hemisfério Sul, tornando-se, dessa forma, aquele que permite às opiniões mais conservadoras, aos pontos de vista nacionalistas (ou diferenciadores) mais extremistas, expressarem-se na Inglaterra e em outros lugares. A cada novo livro, renova essa espécie de traição que consiste em adotar, com relação aos grupos mais deserdados (e em particular aquele de que provém), a opinião mais desfavorável, autorizando-se a assim se manifestar pelo fato de a eles pertencer duplamente.

Um novo “cruzado” racista

O procedimento é ainda mais condenável, na medida em que suas descrições cruéis, cínicas, das misérias do mundo, seus preconceitos – que tornam naturais as razões do subdesenvolvimento em vez de buscar suas causas históricas – passam por uma visão objetiva aos olhos dos leitores ocidentais (ele é “um deles”), e tornam-se impossíveis de serem combatidos por aqueles que são suas vítimas. É, sem dúvida, o que Salman Rushdie5 chama de “a aversão olímpica de Naipaul”, e o que faz com que Derek Walcott, também de origem caribenha de língua inglesa e prêmio Nobel de literatura, declare: “Naipaul doesn’t like negroes6.”

A vontade patética de querer esquecer a origem e a cor de pele explicam sua adesão aos valores dominantes e o desprezo pelos imigrantes e por pobres

O que é mais grave ainda é que, não contente em divulgar, sob a forma de literatura, uma ideologia essencialista, Naipaul professa há muitos anos, e com insistência, um ódio ao Islã para o qual busca justificativas históricas e políticas. Afirma – a partir de uma tese muito curta, mas incansavelmente repetida e comentada em seus livros – que “quando se é um convertido [ao Islã], o indivíduo se torna transparente, culturalmente vazio7”; que “nenhuma colonização foi tão fundo como a do Islã e dos árabes”; que as populações colonizadas se vêem, por causa de sua fé, “privadas de qualquer vida intelectual”; que “a sua identidade se restringe à sua fé”; que é preciso falar de uma “histeria muçulmana8”, de uma “tirania” do Islã; que, para explicar o declínio da Índia, é preciso incriminar, não o sistema colonial inglês, mas o imperialismo muçulmano que “destrói o passado” etc.

Ódio e desprezo pelo Islã

Naipaul explicou recentemente que, enquanto hindu de alta casta (brâmane), começava a compreender a necessidade do sistema de castas na Índia, e, a respeito do partido hindu de tendência fascista Shiv Sena, afirmou: “Tenho a mais profunda simpatia por esse tipo de movimentos que vêm da base9.”

O prêmio Nobel de literatura para Naipaul – que ninguém acreditava possível – não teria justificativa em momento algum: a ausência de criação ou de invenção literárias que caracterizam seus livros deveriam excluí-lo de uma vez por todas da lista dos laureados em potencial10. Mas, neste momento trágico da história em que alguns só sabem invocar “a guerra de civilizações”, é um escândalo insuportável que o prêmio literário de mais prestígio seja atribuído a um divulgador do ódio e do desprezo pelo Islã.
(Trad.: Regina Salgado Campos)

1 - Ler, de Kjell Epsmark, Le Prix Nobel – Histoire intérieure d’une consécration littéraire, Paris, ed. Balland, 1986.
2 - Ler entrevista a Hector Bianciotti, Nouvel Observateur, 18 de julho de 1981.
3 - Paris, ed. Bourgois, 1991.
4 - New York Review of Books, 31 de janeiro de 1991.
5 - Ler, de Salman Rushdie, Patries imaginaires. Essais et critiques, 1981-1991, Paris, ed. Bourgois, 1993, p. 399.
6 - “Naipaul não gosta de negros”, citado por Petri Liukkonen, Books and Writers, www.kirjasto.sci.fi/vnaipaul.htm
7 - Le Monde, 17 de julho de 1998.
8 - Ler, de V.S. Naipaul, “Notre Civilisation Universelle”, Le Débat, Paris, nº 68, p. 86.
9 - Le Monde, 13 de outubro de 2001.
10 - Mesmo se considerarmos que alguns de seus romances (Miguel Street, Le Masseur mystique, Une maison pour Monsieur Biswas, três romances de juventude) podem apresentar uma descrição inédita das sociedades mais pobres ou da visão do mundo dos imigrantes.