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setembro 2007



CINEMA

Kiarostami e Erice

A exposição itinerante ”Correspondências” propõe um diálogo entre as obras cinematográficas de Víctor Erice e Abbas Kiarostami. Por meio da troca de "cartas filmadas", cada qual lança seu olhar sobre a obra do outro


Alain Bergala

Nada dizia que os caminhos de Víctor Erice e Abbas Kiarostami fossem se cruzar. Apesar de terem nascido na mesma semana, no mesmo ano, havia pouca relação entre o contexto espanhol, no qual o primeiro se tornou cineasta, e o meio iraniano, onde o segundo encontrou seu caminho. Apesar de os dois terem conhecido uma mudança radical em suas condições de vida e criação: o fim do franquismo para Erice (que rodou seu primeiro longa-metragem, O Espírito da Colméia, em 1973, quatro anos antes da abolição da censura na Espanha) e a Revolução Islâmica para Kiarostami (que aprendeu o ofício rodando filmes pedagógicos para a Kanoun, instituição criada pela esposa do Xá no antigo regime).

É um dos mistérios da criação que dois homens tão distanciados por suas culturas e seus países estejam tão próximos em suas convicções e em sua relação fundamental com o cinema. Compartilham a certeza de que essa arte é indissociável do estado da infância, que eles tornaram, ao mesmo tempo, uma origem e um tema. As crianças de O espírito da Colméia e de O Sul, de Erice, bem com as de Onde fica a casa do meu amigo? e de A Vida continua, de Kiarostami, descobrem o mundo como um enigma, cuja chave está contida e escondida no visível.

É verdade que o código da censura no Irã proibia de tal forma temas adultos que falar da infância se tornou, durante muitos anos, o recurso para dizer — com todas as sutilezas e invenções que uma censura minuciosa suscita — o que tinha de ser dito. Porém, mesmo sem essa limitação, Kirarostami certamente teria partido da infância, talvez por sua fobia pelos atores profissionais e também porque foi com as crianças que “encontrou” o seu cinema. Erice, por sua vez, teve, desde muito cedo, o sentimento de ser da geração “daqueles que nasceram no tempo do silêncio e da deterioração que se seguiu à nossa última guerra civil”. Uma geração que deve ao cinema seu senso de identidade: “o cinema nos adotou, órfãos reais ou simbólicos, oferecendo-nos um consolo extraordinário, o sentimento de pertencer ao mundo”. Para ele foi preciso, então, voltar à infância e dar ao cinema o que o cinema lhe havia dado, desde a descoberta desconcertante do primeiro filme: a dor e o alento, a mágoa e a alegria misturados.

Erice está convencido de que deve haver mistério em uma imagem, de que aquilo que não se mostra é tão importante quanto aquilo que se dá a ver, e de que “tudo o que é profundo exige um véu”, segundo a fórmula de Nietzsche citada naturalmente por Kiarostami. Ambos praticaram a mesma “política do espectador”, segundo a qual é preciso se ater a um roteiro aberto e a um cinema da não-finitude, com lacunas e espaços vazios, para que o espectador possa encontrar ali o seu lugar e preencher os vãos.

A mesma fascinação pelo mistério, o imprevisível e a surpresa

Apesar de partilharem a mesma fé na realidade, seu cinema está muito longe de um naturalismo raso. Ambos são tomados pela mesma fascinação pelo que jaz sob a terra, pelo que pode surgir do imprevisível, pelo que é invisível à nossa inteligência racional e que só pode ser abordado pelos mistérios da natureza. Um sopro de sagrado anima seus filmes. A água que corre sob a terra, adivinhada pelo pai feiticeiro de O Sul, o vento inexplicável que surge de repente num plano mágico em Onde fica a casa do meu amigo?. Ambos são, ao mesmo tempo, cineastas das origens do cinema e da mais radical modernidade. Eles sempre agiram como artistas plásticos e praticaram, desde o início, uma arte tabular e serial, sempre preservando a ilusão de jogar sabiamente o jogo da ficção.

Só faltava a todas essas correspondências objetivas entre os dois homens e suas obras a possibilidade de estarem dispostas em uma exposição. Esta, Erice Kiarostami Correspondências, nasceu no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, passou pela Casa Encendida, em Madri, e chega agora ao Centro Pompidou, em Paris. Mas a mostra não se limitou a constatar essas correspondências. Tornou-se o motivo de uma correspondência filmada entre os dois homens. Ela dura hoje mais de dois anos e conta com dez cartas-filmes, que são uma novidade na história do cinema e passaram a fazer parte da sua filmografia cruzada.

Essa exposição inverte o gesto pelo qual vários artistas plásticos vêm buscar inspiração, formas e materiais no cinema. Tanto Erice como Kiarostami partiram disso para explorar as fronteiras de outros territórios da arte contemporânea: a fotografia, a pintura, a instalação. Os dois pertencem, afinal, a uma geração que, há uns quinze anos, viu o digital revolucionar a fábrica do cinema, e foram conquistados por ele. A exposição foi a oportunidade, para Erice, de rodar um ensaio autobiográfico sobre sua descoberta do cinema na infância, A morte vermelha.

Jamais submeter-se às leis do cinema como indústria e mercado

Na exposição, pode-se passear por uma instalação monumental de Kiarostami, Floresta sem folhas, ou constatar que Erice colocou em cena de forma totalmente inovadora o olhar e a escuta do espectador diante de quadros do pintor espanhol Antonio López. Os dois cineastas mexem com as linhas e levantam questões essenciais ao museu: Como expôr o cinema? Como articulá-lo com outras formas de arte? Como se tornar intermediadores privilegiados entre as obras e o visitante?

Intermediadores entre gerações Kiarostami e Erice já o são. Internacionalmente reconhecidos, ambos se tornaram, em seus respectivos países, cineastas de referência para as jovens gerações de realizadores, que os consideram “irmãos mais velhos” exemplares e “mestres” cordiais. Os dois imprimiram sua marca em seus cinemas nacionais, inscrevendo seu trabalho como uma obra-guia, nos dois casos a mais representativa de sua geração — um pouco sacrificada na história do cinema, que começou a fazer filmes nos anos 1970, após o grande desabrochar dos anos 1960.

Parece evidente que os dois homens fizeram as mesmas escolhas fundamentais: a de jamais se submeter às leis do cinema como indústria e mercado, aos modismos cinematográficos e ainda mais aos pretensos “gostos do público”; a de se manter bravamente distante de qualquer objetivo de carreira para bem conduzir sua obra, com a soberania que um artista deve ter. Esses dois caminhos deveriam acabar se encontrando em um espaço museológico que se tornou espaço de produção e de diálogo de criação. E isso já está feito.

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