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outubro 2007



"REAL MARAVILHOSO"

A arte rebelde do maestro Lutero

Um músico brasileiro consagrado e de vida aventurosa vê no canto coletivo uma forma de transformar as relações humanas, cria o Fórum Coral Mundial e oferece, em São Paulo, espetáculos incomuns — porém, quase clandestinos...


João Paulo Charleaux

No mundo das artes, muito já se falou sobre cantos de protesto e música engajada como formas de mudar o mundo. É certo que essa veia política já teve dias mais felizes e expoentes mais competentes que o solitário Mano Chao. No Brasil, Chico Buarque e companhia marcaram as décadas passadas com memoráveis canções contra o governo militar, enquanto no Chile, na Argentina e em outras paragens latinas, grupos e cantores estão tão identificados com a luta por democracia que é simplesmente impossível dissociá-los da imagem combativa e protestante. Mas o que dizer da música clássica? É possível falar de uma música clássica de conteúdo político? Sim, é. Principalmente hoje, em São Paulo.

É certo que toda arte é, em si, um gesto político, já que reflete elementos do contexto, do espaço e do tempo em que foi produzida. Assim, é claro que uma das composições mais famosas de Beethoven, Eroica (Sinfonia n°3 em Mi bemol Maior Opus 55), escrita na virada do século 17 para o 18, à luz da Revolução Francesa, traz em si mensagens políticas, embora se trate de música romântica e instrumental, sem ter, portanto, espaço para panfletagem explícita. Da mesma forma, é certo que, ao apagar o nome de Napoleão Bonaparte do título das partituras, raspando tão forte a borracha que quase rasgou a página, Beethoven tinha algo (contra) a dizer sobre o fato de Napoleão dar asas a suas pretensões imperialistas, auto-proclamando-se imperador, em 1804. Talvez esse seja um dos mais conhecidos exemplos de diálogo entre política e música clássica.

Sem tanto alarde e sem a pompa napoleônica, São Paulo tem assistido, ao longo dos últimos meses, a um evento inusitado. Todo quarto domingo de cada mês acontece, na simpática e bucólica Capela do Hospital Santa Catarina (Av. Paulista n° 200) uma série de concertos chamada "Caros Amigos". Na pauta destes concertos, além das notas, vão mensagens políticas.

Um Lutero que esteve na guerrilha e na revolução moçambicana, antes de consagrar-se na música

O regente dessa audácia é o maestro Martinho Lutero Galati de Oliveira, um mineiro que teve que dar a volta ao mundo e parar em Milão, na Itália, para – como acontece com muitos artistas brasileiros – ser reconhecido primeiro lá fora. Lutero é o único brasileiro, depois de nosso maior maestro, Carlos Gomes, a receber o título de Cidadão Milanês. Trata-se de uma figura rara que, além do extenso e admirável currículo musical, tem uma história de vida que é roteiro de cinema: fez parte da Aliança Libertadora Nacional (ALN), pegou em armas na revolução moçambicana, viveu muitos anos em diversos países africanos, fez escala sob a cortina de ferro e foi parar no coração da Europa, onde trabalhou por quatro anos com, nada mais nada menos, que Luigi Nono.

"Lutero bem que poderia, se quisesse, ter abraçado a regência de orquestra, área pródiga em holofotes e cifrões, além de muito mais glamourizada pela grande mídia. Mas não. Mesmo sendo um qualificadíssimo regente de orquestra, Martinho resolveu priorizar, em sua carreira, a esquecida música coral", diz o também maestro Marcus Vinícius de Andrade. "Foi uma espécie de “opção pelos pobres” que se revelou acertada, pois permitiu transformá-lo num dos protagonistas de um movimento internacional pela revalorização do canto coletivo, embrião de um futuro Fórum Coral Mundial".

Apesar da série de concertos do maestro Lutero e do Coral Luther King, em São Paulo, contarem com a presença de parceiros da estirpe do violonista Guinga e do violeiro Ivan Vilela — além de solistas de além-mar, como o cantor italiano Davide Rocca — os leitores das agendas culturais paulistanas não foram informados do espetáculo. "É estranho, né?", pergunta Lutero. "Em algumas revistas especializadas, só aceitaram escrever sobre os nossos concertos pagando, como em forma de anúncio".

Perplexidade à parte, o fato é que grande parte dos paulistanos sequer desconfia da existência, no quintal de casa, da primeira temporada de concertos de um coral realizada no Brasil. "É comum você assistir a temporada de orquestras, mas essa é a primeira temporada de música coral feita no Brasil", diz Lutero.

Reviver, em todo o mundo, cantos e culturas que as armas ou o mercado quiseram esmagar

Mas o que pode haver de tão subversivo num coro e num repertório? A pauta dos concertos, como grande parte da pauta musical de Lutero, é baseada na valorização dos cantos das culturas derrotadas, soterradas, engolfadas pelo novo. Muitas vezes, esse "novo" é anabolizado pelos interesses de mercado. Outras vezes, trata-se, mesmo, da extinção de certos cantos e culturas, como são os casos de certas músicas indígenas da Amazônia brasileira e de tribos africanas, recuperadas nos concertos regidos por Lutero ao redor do mundo.

Além disso, o maestro tenta resgatar a idéia do canto coletivo, aplicando à música um conceito sofisticado de socialismo em contraposição à figura do cantor envernizado e embalado para vender. Lutero coleciona histórias sobre o impacto positivo de coros em pequenas comunidades, principalmente rurais, onde a experiência coletiva muda radicalmente as relações humanas. Essa filosofia tem sido aplicada em várias partes do mundo, através da experiência do Fórum Coral Mundial, que reúne ao redor do mundo músicos que se preocupam não só em não estragar a voz, protegendo-se de resfriados, mas, principalmente, músicos preocupados em disseminar o vírus do engajamento político.

Para os que têm na memória sonolentas apresentações do coro da fábrica, da escola, da igreja e da terceira idade, a série de concertos em São Paulo é um assombro. "Por muito tempo, principalmente nas décadas recentes, o coro ficou marcado como a coisa de fábrica, de idoso. É uma pena", diz Lutero. Para quem duvida da beleza da música coral, basta uma orelhada, por mais descompromissada que seja, nas Cantatas de Bach.

Assistir à série de concertos "Caros Amigos", em São Paulo, pode ser o primeiro passo para quem nunca imaginou que a música clássica pudesse ter uma pertinência política tão atual.

Mais:

Concertos passados:
Música Étnica, América Latina, Língua Portuguesa, Afro /África, Itália e USA / Black, com negro spiritual.

Próximos Concertos:
Espanha - 28 de outubro
Concerto de Natal - 25 de novembro

Ingresso Avulso: R$ 10,00

Outras informações: (11) 3231-5778 www.lutherking.art.br