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agosto 2008



LITERATURA

As histórias da história de Biafra

“Meio sol amarelo”, de Chimamanda Ngozi Adichie, põe a história da tragédia de Biafra no mapa da geração Google


Marina Della Valle

Colocar “Biafra” no Google em português, sem restringir a língua, produz resultados curiosos. Os primeiros resultados trazem cifras, letras e ofertas de discos do cantor Biafra – que aparentemente passou a assinar Byafra –, assíduo freqüentador de programas musicais na TV nos anos 1980. Avançando um pouco aparecem referências a Jello Biafra, ex-vocalista da banda punk americana Dead Kennedys. A República de Biafra, breve nação segregacionista no sudeste da Nigéria, que existiu entre maio de 1967 e 15 de janeiro de 1970, aparece pontualmente, em sites escolares. Parece relegada aos livros de história e à mente dos velhos o suficiente para se lembrar das terríveis imagens das crianças deformadas pela fome – o que aliás gerou o apelido do cantor de Sonho de Ícaro, devido a sua magreza na adolescência.

Se a fonte de informações mais cara aos jovens ocidentais parece de pouca valia para saber mais sobre esse conflito que estampou jornais e TVs com crianças africanas deformadas pela fome e por enfermidades antes da tragédia na Somália – essa sim mais fresca na memória dos que têm mais de trinta anos –, no que depender de uma jovem, esse episódio triste da história da Nigéria será passado às gerações futuras no melhor estilo dos grandes contadores de história.

Chimamanda Ngozi Adichie, 31 anos, que esteve na última edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) atrai a atenção, num primeiro momento, por sua beleza desconcertante. Christina Patterson, do New York Times, declara que a escritora “é um dos seres humanos mais bonitos” que viu na vida, em entrevista publicada em agosto de 2006. À luz da leitura de Meio sol amarelo (Cia. das Letras, 2008, tradução de Beth Vieira), o aspecto que salta aos olhos a respeito dessa nigeriana nascida em 1977, criada na cidade universitária de Nsukka, deixa de ser a harmonia entre seus grandes olhos negros e a boca bem-desenhada no rosto em forma de coração. É a juventude de Adichie que causa estranhamento na relação autor-obra. O aclamado escritor nigeriano Chinua Achebe, um dos admiradores arrebanhados por Adichie – lista que inclui ainda a escritora americana Joyce Carol Oates – demonstrou espanto que o livro tenha sido escrito por alguém tão jovem: “Não costumamos associar sabedoria a iniciantes”, afirmou, em frase enviada aos editores de Adichie em Nova York, agora estampada na capa de algumas edições da obra.

A tragédia se humaniza

Meio sol amarelo – o título é referência ao símbolo de Biafra, presente na bandeira e usado nos uniformes dos soldados durante o breve período de existência da nação – narra os fatos do começo e do final dos anos 1960 por meio de dois núcleos de personagens, em torno de duas irmãs gêmeas de classe alta do sudeste da Nigéria, antes e durante a declaração da independência de Biafra e da guerra civil que acabou com a república segregacionista. O livro está dividido em quatro seções, que alternam narrativas do começo e do final dessa década sangrenta e agitada na Nigéria, num conflito causado por violência sectária e interesses econômicos, entre outros motivos, num padrão que se repete no continente africano até esse minuto, quando milícias islâmicas continuam a exterminar animistas em Darfur, no Sudão.

A guerra civil na Nigéria vitimou especialmente a etnia ibo, uma das mais de 250 encontradas no país. Adichie nasceu sete anos após o fim de Biafra e seus pais perderam tudo na guerra civil, incluindo seus próprios pais. A escritora resgata a história de seu país e de sua família reinventando o papel da contadora de histórias, criando personagens que podem parecer um tanto folhetinescos numa primeira apresentação – gêmeas não-idênticas que entram em conflito, distintas como óleo e água – e as dotando de uma humanidade quase palpável.

Não há heróis na história de Biafra recriada por Adichie. Há Oleanna, a irmã suave e voluptuosa que deixa a vida de luxo da família para acompanhar o professor universitário idealista Odenigbo. Há Kainene, a outra irmã, angulosa e altiva, enérgica, o pulso firme dos negócios da família, e seu namorado, o escritor britânico Richard, que chega ao país com a intenção de escrever um livro sobre a arte ibo e acaba ficando. O contraponto da visão das classes média e alta é dado principalmente pela figura de Ugwu, rapazola que deixa seu vilarejo para trabalhar como criado de Odenigbo.

Meio sol amarelo é uma obra de fôlego – são 504 páginas – que já nasce com cheiro de clássico. A autora preocupou-se com a reação do pai, no lançamento, não ao retrato de um desastre humanitário que vitimou a família, mas às cenas de sexo – realistas, naturais. Oleanna, Kainene, Odenigbo, Richard, Ugwu – eles transbordam das páginas não por feitos heróicos, mas por suas qualidades e falhas, sua plausibilidade. A tragédia de Biafra deixa o universo das notícias chocantes para se humanizar, para se multiplicar em visões distintas, ganhar dimensão. O efeito se amplia combinado ao noticiário atual e à herança ainda mais recente dos conflitos na África e seus efeitos.

Nesse jogo de ecos, Adichie põe Biafra no mapa da geração Google, que precisa driblar o cantor brasileiro e o punk americano para chegar ao passado recente africano, mas que, por outro lado, pode escapar da falta de interesse da imprensa local – com raras exceções – sobre notícias diárias do continente africano por meio de jornais estrangeiros e agências de notícias especializadas. Em tempo: a busca no Google por “Chimamanda Ngozi Adichie” resulta em 124 mil páginas.