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abril 2002



DOSSIÊ MILOSEVIC / O PROCESSO

Fiasco em Haia

O Tribunal Penal Internacional sobre a Iugoslávia (TPII) caminha rapidamente para a desmoralização. Ele procurou ocultar que outros, além de Milosevic, cometeram crimes, quas sempre com a cumplicidade ocidental


Catherine Samary

A CNN suspendeu a transmissão do processo desde que o acusado fez projetar as imagens dos “danos colaterais” provocados pelos bombardeios da OTAN

“Sabia-se que o processo de Milosevic seria difícil, mas quem poderia imaginar que seu começo se transformaria em tamanho desastre para o Tribunal Penal Internacional (TPII) de Haia?” Essa avaliação, de Stojan Cerovic, jornalista de Vreme1, muito conhecido em Belgrado por sua hostilidade com relação a Slobodan Milosevic, constata o que, com um certo orgulho, a vox populi exprimia nas ruas da capital sérvia após os primeiros dias do que deveria ser um “processo histórico”.

Até a abertura do processo, no dia 12 de fevereiro último, Milosevic e seus defensores pareciam tender a boicotar um tribunal cuja legitimidade denunciavam2. Protestavam igualmente contra a negação de direito, que representa o “seqüestro” do ex-presidente, então prisioneiro em Belgrado, e sua transferência para Haia. A Corte Constitucional iugoslava acabava de confirmar sua recusa a qualquer extradição na ausência de uma lei - lei até hoje não votada - sobre a cooperação com o TPII.

Belgrado aplaude Milosevic

Desde 19 de fevereiro, quando o acusado desestabilizou a primeira testemunha de acusação, nem o site do tribunal divulgou mais as sessões

O ex-presidente iugoslavo preferiu utilizar essa tribuna, com ampla cobertura pela mídia, para apresentar sua própria defesa. A população de Belgrado em massa acompanhou o início do processo, transmitido diretamente, e na íntegra, em três canais... durante as primeiras semanas. Desde então, ela conta, todos os dias, as vantagens obtidas pelo acusado, que decidiu “tomar o povo e a opinião pública como júri” e recupera a popularidade...

A CNN suspendeu a transmissão do processo desde que o acusado fez projetar as imagens dos “danos colaterais” provocados pelos bombardeios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Depois de 19 de fevereiro, dia em que o acusado, através de seu contra-interrogatório, desestabilizou a primeira testemunha de acusação, Mahmut Bakalli, nem o site do TPII divulgou mais as sessões. A televisão pública da Sérvia (RTS), no dia 8 de março, e a televisão federal Yuinfo, no dia 13, também pararam de transmitir (“caro demais”) o processo. Só o canal B92, tributário de financiamentos privados e de ligações técnicas favoráveis com o TPII, continua fazendo a cobertura do processo... Será que somente até o momento em que os patrocinadores deixarem de considerá-lo “oportuno”?

Construção paranóica

A procuradora Carla Del Ponte contribuiu para desacreditar o TPII, ao se recusar a investigar a acusação apresentada contra a OTAN

“Não posso deixar de pensar que há muito direito, mas muita história superficial, reduzida, manipulada, que há uso político e hipocrisia3”, declarou o presidente Vojislav Kostunica. De fato, a despeito dos esforços da justiça de Haia para se mostrar imparcial, a procuradora Carla Del Ponte contribuiu muito para desacreditar o TPII ao se recusar a investigar a acusação apresentada contra a Otan por “crimes de guerra” contra alvos civis. E o acusado Milosevic (independentemente do que se pense de sua política e de sua interpretação de mão única da história) foi beneficiado pela “construção paranóica” - que Stojan Cerovic denuncia com razão - segundo a qual “a catástrofe que aconteceu na ex-Iugoslávia não seria (...) senão o resultado de um complô criminoso de um grupo de pessoas reunidas em torno de Milosevic4”.

O sociólogo Srdjan Bogosavljevic, entrevistado em Belgrado durante a primeira semana do processo, explicou as reticências populares em admitir os crimes cometidos em nome dos sérvios: “A maioria da população se diz incapaz de cometer crimes e pensa que isso é válido para os sérvios em geral. Mas a principal causa dessa cegueira é que há, na Sérvia, cerca de 600 mil refugiados sérvios da Croácia e da Bósnia: os crimes dos outros são sempre mais conhecidos.”

Testemunha desmoralizada

A principal causa da cegueira é que há, na Sérvia, 600 mil refugiados sérvios da Croácia e Bósnia: os crimes dos outros são sempre mais conhecidos

Aqui e ali, percebe-se o caráter “racista” das piadas contadas em Belgrado sobre as testemunhas kosovares albanesas. Na realidade, Bakalli, antigo apparatchik da Liga dos Comunistas, era o chefe da província de Kosovo em 1981: nessa qualidade, encarna todas as fragilidades da acusação. Foi lamentável, como testemunha contra Milosevic, porque tentou, a todo custo, sustentar que a crise de Kosovo teve início no discurso de Milosevic em 1989... Foi lamentável também para a causa albanesa: o acusado não deixou de lembrar que, em 1981, Bakalli havia recorrido aos tanques para esmagar as manifestações de jovens kosovares que reivindicavam o status de república. Reivindicação que a testemunha, na época, havia rejeitado durante uma entrevista citada por Milosevic...

A responsabilidade desse tipo de depoimento incumbe à engrenagem construída para legitimar a incriminação de Milosevic em relação a Kosovo durante os bombardeios da Otan, esvaziando a natureza dos conflitos reais que devastavam a província e, por trás das expulsões, abstraindo-se da guerra civil agravada pelos bombardeios. Será que o TPII será acusado de “revisionismo” por haver retirado da peça de acusação o famoso plano “ferradura”5 que se revelou ser falso? A espiral das bombas e das palavras produziu uma auto-intoxicação (“Auchwitz”, “genocídio”, “deportação”...) que a constatação dos fatos fez com que “murchassem”... Mal trabalhadas, as teses dominantes da mídia da época, que visavam a legitimar a guerra da Otan, ainda impedem de se voltar efetivamente à interpretação de um conflito que opõe de fato duas legitimidades, a sérvia e a albanesa, num mesmo território.

Entretanto, os fatos se impõem. Se numerosos kosovares albaneses foram vítimas de crimes sérvios muito reais, a procuradora não pôde, no entanto, acusar Milosevic pelo “genocídio” no Kosovo. Donde, a extensão do processo à Croácia e à Bósnia. Mas ninguém ignora que os acordos de Dayton ratificaram as limpezas étnicas da época e que seus responsáveis se achavam em torno da mesa de negociações... Se Milosevic é culpado por crimes contra a humanidade, outros também são, junto com ele. Sem esquecer os cúmplices: os governos ocidentais. (Trad.: Iraci D. Poleti)

1Cf. Courrier International, n°592, 7 de março de 2002. 2Cf. a entrevista de Jacques Vergès (8 de janeiro de 2001 www.diplomatiejudiciaire.com...). O orçamento do TPII passou de 276 000 dólares, em 1994, a 96 milhões em 2001, sendo que 14% representam finaciamentos privados e o restante vem das Nações Unidas. Washington gostaria de reduzir essas despesas "excessivas". 3Le Monde, 21 de março de 2002. 4Vreme, op. cit. 5Cf. Serge Halimi, Dominique Vidal, L’Opinion, ça se travaille. Les médias, l’OTAN, les médias et la guerre du Kosovo, Agone, Marseille, 2000.