logo

maio 2002



DOSSIÊ MÍDIA & NEGÓCIOS

E a água foi privatizada...

O caso exemplar de La Paz revela como a concessão dos serviços a empresas como a Vivendi favorece a contaminação da água, a devastação do ambiente e a alta das tarifas


Franck Poupeau

Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de “desobediência civil” contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas

No momento em que é cada vez mais denunciada, a “globalização mercantil” lança seus tentáculos sobre os gêneros de primeira necessidade, como a água, fonte de lucros sem fim. Esse mercado é denominado por duas grandes multinacionais francesas, a Vivendi-Générale des Eaux e a Suez-Lyonnaise des Eaux, que se apropriaram de cerca de 40% do atual mercado, e que envia a conta por seus servicos a mais de 110 milhões de pessoas cada uma, respectivamente em 100 e 130 países. Os lucros dessas multinacionais decorrem da desregulamentação do comércio, não somente com a cumplicidade das instituições internacionais, mas também dos governos nacionais: esse mercado é ainda mais lucrativo pelo fato de o serviço de água ser administrado por empresas públicas, ou estatais, em quase 85% das grandes cidades do mundo.

No “mercado da água”, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter.

A vitória dos moradores de Tucumán

A perda de controle das populações locais sobre o abastecimento de água vem acompanhada pelo aumento de preço, o que impede o acesso dos mais pobres ao serviço

Contudo, as multinacionais da água passaram por alguns dissabores. Em alguns casos, foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de “desobediência civil” contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas. A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto (104%, em média) provocou o protesto dos consumidores da província: “Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos.

OMC impede leis de proteção ambiental

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências ambientais decorrentes da integração das economias locais a um “mercado unificado”, o que implica não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infraestruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

Mas não deve ser omitida a participação ativa desses governos nas atuais dinâmicas de desregulamentação e sua responsabilidade pelos contratos negociados com instituições internacionais como o Banco Mundial, a OMC ou o Word Water Council. A reunião da OMC em Catar, em novembro de 2001, por exemplo, só reforçou a privatização: com o título “Comércio e meio ambiente”, o artigo 31, inciso 3, exige, na verdade, “a redução ou, conforme o caso, a eliminação dos obstáculos tarifários e não tarifários aos bens e serviços ambientais”, entre os quais, a água. Segundo essa lógica, qualquer tentativa de controle de exportação da água para fins comerciais passa a ser ilegal. E o artigo 32 tem por objetivo impedir os países de apelarem para obstáculos não tarifários, como as leis de proteção ambiental.

A privatização da água em La Paz

As denúncias em relação à privatização da água referem-se às conseqüências ambientais da integração das economias locais a um “mercado unificado”

Os efeitos sociais dessas orientações são menos estudados que os problemas ambientais que provocam. A perda de controle das populações locais sobre o custo da água faz-se acompanhar pelo aumento de seu preço, o que impede o acesso dos mais pobres ao serviço da água, assim como o direito a uma informação transparente sobre padrões sanitários mínimos. Exemplo: a privatização da água em La Paz (Bolívia).

Fevereiro de 2002, bairro de Alto Lima, o mais velho e mais pobre de La Paz. A chuva forma córregos barrentos que transbordam das sarjetas e inundam as calçadas. As ruas sem calçamento, esburacadas e cheias de sulcos, onde o acúmulo de sujeira denuncia a inexistência de um serviço de limpeza pública, já não dispõem de iluminação à noite, desde que esse serviço também foi privatizado. Os serviços mais elementares são feitos por uma única ONG. Por ocasião da feira semanal, os vendedores espremem-se sob as lonas azuis que protegem, bem ou mal, suas barracas de alimentos e de roupas.

Antonio mora em Alto Lima desde a infância. Esse bairro popular está situado a cerca de 4.000 metros de altitude – os mais ricos residem mais abaixo, a cerca de 3.200 metros. Alto Lima domina o resto da capital, mas é preciso mais de uma hora para chegar ao centro da cidade. Isso explica por que Antonio vai tão pouco ao centro: muito longe e muito caro. Antonio está inconformado pelo fato de a água, que existe em abundância, não ser disponível para consumo. Desde que sua distribuição passou a ser administrada pelo consórcio francês Aguas del Illimani (Lyonnaise des Eaux), seu preço passou de dois para 12 bolivianos (Bs). Sem poder suportar esse aumento, a maioria dos moradores do bairro substituiu os chuveiros por banheiros públicos, pagos.

Água encanada é luxo

Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pelo consórcio francês Aguas del Illimani, seu preço aumentou 400% no bairro de Alto Lima

A concessão à empresa privada fez-se acompanhar pela deterioração do serviço causada pelas demissões, com vistas à redução de custos. A equipe de 18 técnicos, que controlava mensalmente cerca de 80 mil relógios de água do bairro na Zona Norte, foi reduzida pela metade e encarregada de outras tarefas de manutenção. O consumo de cada casa quase nunca é registrado: seja qual for o consumo real, o valor pago pela conta é sempre o mesmo.

As prioridades da campanha de comunicação do consórcio eram a melhoria do serviço e a ampliação da rede. A realidade, porém, é outra: os cortes são cada vez mais freqüentes devido à falta de manutenção – e o serviço leva cada vez mais tempo para ser restabelecido. O recurso aos velhos poços torna-se às vezes necessário para garantir a continuidade do comércio.

Enquanto o salário dos administradores passou de 12 mil para 65 mil bolivianos por mês – os trabalhadores recebem, em média, apenas 1.800 bolivianos –, a partir de agora é preciso pagar cerca de 330 reais (1.100 bolivianos, aproximadamente) pela instalação da água, contra o valor anterior à privatização de cerca de 215 reais (730 bolivianos), que podiam ser pagos em cinco anos. “Hoje, é um luxo ter água na cidade de El Alto”, diz um trabalhador demitido pela empresa Aguas del Illimani. Aliás, um luxo que ele não pode se permitir, agora que está desempregado.

Acesso à água é “questão cultural”

“O objetivo era demonstrar que a Lyonnaise des Eaux podia também se ocupar das zonas difíceis”, explicou Arnaud Bazire, executivo francês da Aguas del Illimani. O resultado está longe de ser satisfatório. “Eles falavam de equipamentos novos, mas o que fizeram foi pintar os canos de branco”, afirma um operário da manutenção, que também menciona a presença cada vez mais freqüente de animais mortos na canalização. Em outros países, algumas empresas privatizadas foram multadas por não respeitarem normas mínimas de higiene. Até o momento, a Aguas del Illimani só foi condenada por ter cortado, durante várias semanas, o fornecimento de água às administrações municipais, e, portanto, a todas as escolas das cidades. Mas, em geral, os cortes de água são feitos impunemente. O segundo e terceiro setor de Alto Lima não são atendidos há vários meses. Em dezembro de 2000, por exemplo, Arnaud Bazire declarou que a população do Alto era “o pior cliente” e “o pior consumidor do mundo”.

"Eles falavam em equipamentos novos, mas o que fizeram foi pintar os canos de branco", informa um operário da manutenção

Denis Cravel, especialista em água do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) faz coro: “A população tem maus hábitos” porque acredita que “o serviço deveria ser gratuito”, quando “a água é um bem social, mas também econômico”. Alvaro Larrea Alarcon, engenheiro do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, declara que a concessão poderia ser rentável se a população consumisse de outra forma... ou seja, mais: “É fundamental ensinar à população que ela deve se acostumar a pagar as contas de água. Uma pessoa cresce sem acesso à água, utilizando as instalações públicas ou o rio. Está habituada a isso, e não a ter água em casa. É uma questão cultural. É preciso ensinar às pessoas a tomar banho uma vez por dia, a molhar as plantas, a lavar o carro...” O engenheiro parece ignorar que nas planícies desérticas do altiplano a população utiliza quase exclusivamente o transporte coletivo e que os problemas de desertificação já afetam a bacia andina.

Por que os habitantes desses bairros aceitam – com a paciência indiferente e otimista que os observadores estrangeiros costumam valorizar nos mais desfavorecidos – tanta desconsideração? É que sua condição de subproletários os impede de conceber um projeto para o futuro e, portanto, de estabelecer as bases de uma organização coletiva. Mais ainda, essa impossibilidade é criada pela ausência de interlocutores oficiais, não somente devido à desagregação dos serviços públicos, mas também à distância crescente entre as elites políticas e o resto da população. A cidade de Cochabamba é a única cujos moradores, estimulados pelos camponeses vizinhos, encontraram força e recursos para reagir e desprivatizar a distribuição da água. Mas o grupo anglo-saxão Aguas del Tunari (controlado pela multinacional Bechtel), que tentou se instalar na região, não investiu em comunicação, é verdade, tanto quanto os grupos franceses, cujas proezas em matéria de espoliação coletiva são invejáveis.
(Trad.: Marinilzes Mello)