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julho 2002



EGITO

A nacionalização do Canal do Suez

No dia 26 de julho de 1956, Gamal Abdel Nasser anunciou publicamente a nacionalização do Canal do Suez. Le Monde diplomatique publica, abaixo, um trecho do livro ’L’Egypte en mouvement’, de Jean Lacouture, relatando o episódio


Jean Lacouture

Hoje, por volta das 19 horas, a noite começava a inundar a imensa praça Mohammed Ali onde a multidão, rodeada por eficientes cordões policiais, se instalara, bem comportada. Uma deliciosa brisa ressuscitava as pessoas que, como eu, acabavam de passar por uma das semanas mais calorentas que o Cairo já conhecera. Da sacada de onde Nasser iria falar, podia-se ver, uns vinte metros abaixo, o lugar de onde, em outubro de 1954, o irmão muçulmano Abdel Latif disparara oito tiros contra Gamal “agente do imperialismo anglo-americano” Nasser. Este acabava de passar por nós, subindo para a sacada. Sorria, vagamente, talvez sem evocar essa lembrança. Pegando o microfone com a mão, começou sua arenga num tom curioso. Que tipo de linguagem era aquela, de bate-papo, coloquial, até um pouco vulgar? Seduzida, a multidão destaca os mínimos efeitos dessa conversa em tom divertido. Tínhamos vindo para ouvir um monólogo de tragédia e servem-nos uma crônica humorística.

“E agora vou contar para vocês os meus desencontros com os diplomatas norte-americanos...” E eis que o austero Gamal, o instrutor, começa a falar na linguagem do povo, na língua falada pelos pés-de-chinelo. A multidão se esbalda: “Um diplomata norte-americano veio dizer-me: se um tal de Allen1 o procurar para entregar um recado do Departamento de Estado a respeito das armas checas, pode mandá-lo plantar batatas. Mas se ele voltar sem ter entregue o recado, aí é o Dulles2 que o vai mandar pastar... O que se pode fazer por ele?...” E o orador faz uma palhaçada, imitando o papel do astucioso Goha3 enfrentando os colossos estrangeiros, enquanto à nossa volta os jornalistas egípcios, espantados com a novidade do tom brincalhão, murmuram: Kuaíss Auí (muito bom). Aquele homem tímido e acanhado acaba de descobrir, pelo humor, como se deve falar ao povo. Lá em baixo, no escuro da praça, o entusiasmo inebriante que fervilhava dá lugar a gargalhadas incontidas que ressoam sem parar.

Mas eis que muda o tom. Ao contar seus diferendos com Eugene Black, presidente do Banco Internacional4, Nasser solta, de repente, esta frase insólita: “Black me fez lembrar de Ferdinand de Lesseps...” E ele pronuncia “Dé Lissipce”, num tom sibilante.

É então que começa, num crescendo incessante, um discurso de acusação amargo, depois violento, depois raivoso, contra o “colonialismo hipotecário”. As primeiras reações da multidão são fracas. Ela esperava, evidentemente, que a sátira anti-americana desembocasse na divulgação de medidas pró-soviéticas. E o que teria Lesseps a ver com isso? Mas o discurso de Nasser torna-se interessante: “Mas nós tomaremos de volta os benefícios de que nos privou essa empresa imperialista, esse Estado dentro do Estado, enquanto morríamos de fome...” No palanque oficial, assim como no chão da praça, começa a ouvir-se bater palmas, de surpresa, de estupefação: “E eu os informo que neste mesmo momento, o Diário Oficial está publicando a lei que nacionaliza a Companhia, que neste mesmo momento agentes do governo estão assumindo o controle das instalações da Companhia!” Em volta de nós, assim como no escuro da praça lá em baixo, há uma explosão... Jornalistas reconhecidamente céticos com relação ao regime sobem nas cadeiras e berram, extravasando o seu entusiasmo, enquanto Nasser, subitamente tomado por um acesso de riso – era um golpe tão surpreendente, uma audácia tão grande... – continua: “O canal irá pagar a barragem... Há quatro anos, neste mesmo lugar, Faruk fugia do Egito. Hoje, em nome do povo, eu tomo a Companhia! Hoje à noite, o nosso Canal egípcio será dirigido por egípcios! Por egípcios!...” Não se ouvem mais suas palavras nem suas gargalhadas. Tamanha é a tempestade de ovações, de gritos de alegria, que ele se agarra à tribuna do palanque, onde nós, os poucos estrangeiros presentes, nos entreolhamos estupefatos. Jamais se viu um homem lançar-se a uma aventura tão perigosa com tanta alegria.

Há mais ou menos meia hora, justamente no momento em que, de acordo com a operação planejada, a rádio transmitia a frase “Black me fez lembrar de Ferdinand de Lesseps”, forças do exército egípcio ocuparam a sede da Companhia no Cairo e as suas instalações em Ismailia, em Port-Said, em Port-Tewfik e no Suez. Uma operação feita com uma precisão pouco egípcia... “Convidado” pelo governador de Ismailia, o diretor-administrativo da empresa, Ménessier, tomou conhecimento dos fatos ouvindo o discurso, pelo rádio, no palácio do governo. Alexandria inteira pulava e dançava nas ruas e nas sacadas dos prédios, com caminhões com alto-falantes que atravessavam a cidade divulgando, no som mais alto possível, o discurso de Nasser. Mas a presença do cruzador inglês Jamaica na baía, em visita “de cortesia”, moderava o entusiasmo de algumas pessoas. “O gesto é corajoso, mas que Deus nos ajude...”, murmurou um amigo alexandrino.

Mas só dois dias depois, no Cairo, veríamos a verdadeira exaltação popular, quando da volta de Bikbachi, subitamente promovido a herói nacional. Era preciso ter conhecido o ex-oficial do Estado-Maior, o tristonho Gamal Nasser de antigamente, o tecnocrata tímido, boiando agora, de repente, sobre uma massa ensurdecedora, agitando os braços como um náufrago num mar desconcertante: um campeão de boxe voltando para sua casa, em Chicago... E por toda parte, nos cafés populares e nos salões burgueses, com a mesma aprovação: “Fez ele muito bem! Atropelou os que o queriam abater e isso é um gesto pelo qual a nação esperava. Agora é preciso apoiá-lo.” Ouvimos palavas como essas da boca de wafdistas, de simpatizantes dosa Irmãos Muçulmanos, de fazendeiros vítimas da reforma agrária, de praticamente toda a oposição. Entre comunistas e simpatizantes era o delírio. Só se ouviam algumas reservas entre as pessoas com mais de cinqüenta anos ou entre os leitores assíduos da imprensa britânica, evidentemente chocados pela dimensão e violência das reações em Londres. “Mas o que podem vocês fazer?”, perguntam-nos todos os nossos interlocutores egípcios. Haveria ansiedade em suas vozes? Aparentemente, nem um pouco.

Na tribuna da Câmara dos Comuns e do Palácio Bourbon, os senhores Eden, Lloyd, Mollet e Pineau vituperam contra o “novo Hitler” e previnem esse “pirata insolente” e esse “aprendiz de ditador endividado” que lhe será imposta uma capitulação pela força. Mas, justamente ao mesmo tempo, no Cairo, o comandante Aly Sabri, colaborador mais próximo do primeiro-ministro, dizia-nos com uma fleuma espantosa: “Mas por que esse barulho todo?... A Companhia do Canal era egípcia, nós a nacionalizamos, e daí? O que perde a França com isso? As transportadoras francesas? Serão regiamente indenizadas. A liberdade do canal? Nós a garantimos integralmente. Antes, não tínhamos interesse em proteger uma navegação que nada nos trazia. Mas agora... Todo tipo de sanções que queiram preparar contra nós – boicote do canal, bloqueio de contas... – sairão mais caras para vocês do que para nós. E os norte-americanos irão abandoná-los... Os empregados? Não serão condenados a trabalhos forçados. Os que quiserem ir embora não serão impedidos, desde que nos dêem alguns dias de aviso prévio. O que queremos evitar, no interesse dos usuários, é uma deserção maciça, como forma de sabotagem...”
(Trad.: Jô Amado)

1 - N.T.: George V. Hallen era sub-secretário de Estado norte-americano para o Oriente Médio. O secretário na época era John Foster Dulles.
2 - N.T.: John Foster Dulles, então secretário de Estado.
3 - N.T.: O autor faz uma comparação entre a personagem egípcia, Goha, e Panurge, companheiro e fiel amigo de Pantagruel, de Rabelais. A personagem de Panurge é descrita como uma pessoa debochada, cínica, mas também criativa e astuciosa.
4 - Pressionado pelos Estados Unidos, o Banco Internacional voltou atrás, em julho de 1956, do acordo de princípios que assinara com o Egito para financiar a construção de uma grande barragem em Assuan. A barragem acabaria sendo construída, principalmente devido à ajuda soviética.