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junho 2003



DESEMPREGO

Este terrível descanso, o da morte social

Um estudo coordenado em 1931 por Paul Lazarsfeld - que é uma obra de referência sobre o desemprego - mostra em estado bruto a experiência do abandono. Privados da ação da vida social, o tempo livre é para eles apenas tempo morto, não-tempo


Pierre Bourdieu

Os pontos fracos da obra de Lazarsfeld não estão na imprecisão dos valores, como pensava o autor, mas na visão de ciência como simples reflexão, registro e medida

Em 1931, dois pesquisadores, Marie Jaboda e Hans Zeisel, realizaram, sob a orientação de Paul Lazarsfeld, um estudo junto aos desempregados de Marienthal, pequena cidade austríaca cuja principal empresa havia fechado. Este texto - publicado na Alemanha, em 1932, em uma época marcada pelo desemprego em massa, alguns meses antes de Hitler chegar ao poder (janeiro de 1933) - é considerado obra de referência sobre o desemprego e seus efeitos. No entanto, durante muito tempo, os autores resistiram à sua tradução. Não estavam plenamente satisfeitos com seu trabalho, pois consideravam que se tratava de uma primeira abordagem sem o aprofundamento necessário.

Traduzido na França em 1981 (por Françoise Laroche), esse texto foi publicado pelas Edições de Minuit com um breve prefácio de Pierre Bourdieu, aqui novamente publicado, na íntegra.

Uma justificativa para a ciência

Por um paradoxo muito bom quando se consideram seus vários aspectos, o texto Les chômeurs de Marienthal é, sem dúvida, de todas as obras de Paul Lazarsfeld, a que hoje mais nos satisfaz, embora seja, indiscutivelmente, a que menos o agrada. Não, como diriam alguns, por tratar de um objeto positivamente notado e conotado e por se inspirar numa declarada intenção de servir e, no caso, a “boa causa”.

O maior valor da obra é mostrar a experiência do desemprego em estado bruto, em sua verdade metafísica de experiência do estado de abandono

Eu tenderia a pensar, ao contrário, que os pontos fracos mais concretos desse trabalho estão menos - como acreditava ele - na imperfeição e imprecisão dos valores do que na incapacidade de pensar a ciência de outro modo que não a simples reflexão, o registro, a medida de tudo e de nada. E na tendência a encontrar a justificativa dessa atividade científica, que é incapaz de estabelecer uma finalidade para si mesma, em tal ou tal função atribuída de fora - aqui, o socialismo ou a luta contra o desemprego; ali, no tempo do exílio norte-americano, uma outra forma de “demanda social” nem mais nem menos inaceitável - e que impõe à pesquisa seus objetivos e, principalmente, seus limites, conscientes ou inconscientes.

Experiência do abandono em estado bruto

Penso, por exemplo, em todos os efeitos que pôde exercer sobre a relação de pesquisa e sobre a própria observação das práticas o fato de os pesquisadores terem tido, para abordar seu objeto, que se apresentar como “assistentes sociais” e, desse modo, se exporem a suscitar o que aparece aos dominados, instruídos pela experiência, como a contrapartida obrigatória de toda ação de assistência ou de beneficência, isto é, a submissão mais ou menos alardeada às normas dominantes. Mais uma vez: não que haja nisso algo que seja moralmente “censurável” ou politicamente “suspeito”. Ou que possa existir, seja lá o que se faça, uma relação de pesquisa pura, da qual todo efeito de imposição - às vezes, de dominação - esteja ausente. Mas esquecer que a própria pesquisa é uma relação social, que tende, inevitavelmente, a estruturar todas as interações, é se condenar a tratar como um dado, um dado puro, como gostam todos os positivismos, o que, de fato, é um objeto pré-construído segundo leis de construção que se ignora haver participado de sua ação.

Mas, por uma estranha revanche, a ausência quase total de construção consciente e coerente, que condena o pesquisador à fuga compensatória num esforço frenético de meditação exaustiva, é sem dúvida responsável pelo que constitui o valor mais extraordinário dessa obra: a experiência do desemprego nela se expressa em estado bruto, em sua verdade quase metafísica de experiência do estado de abandono.

A morte social

Espoliados da ilusão vital de ter uma função ou uma missão, para existirem matarem o não-tempo, recorrem a atividades como os jogos de azar

Através das biografias ou dos testemunhos - penso, por exemplo, naquele desempregado que, após haver escrito 130 cartas solicitando emprego, todas sem resposta, abandona sua busca, como que esvaziado de toda energia, de todo ímpeto rumo ao futuro - através de todas as condutas que os pesquisadores descrevem como “irracionais”, quer se trate de compras que desequilibram o orçamento por muito tempo ou, numa outra ordem de coisas, do abandono dos jornais políticos e da política em benefício de revistas (mais caras, no entanto) e do cinema, o que se manifesta ou se trai é o sentimento de desamparo, às vezes de absurdo, que se impõe ao conjunto desses homens repentinamente privados não só de uma atividade e de um salário, mas também de uma razão de ser social e, assim, lançados à verdade nua de sua condição. A saída, a aposentadoria, a resignação, o indiferentismo político (os romanos o chamavam de quies) ou a fuga no imaginário milenar são algumas das muitas manifestações - todas igualmente surpreendentes pela expectativa do sobressalto revolucionário - desse terrível descanso, que é o descanso da morte social.

Com seu trabalho, os desempregados perderam as mil e uma pequenas coisas nas quais se realiza e se manifesta, de modo concreto, a função socialmente conhecida e reconhecida, isto é, o conjunto dos fins colocados por antecipação, fora de todo projeto consciente, sob a forma de exigências e de urgências - encontros “importantes”, trabalhos a entregar, cheques a encaminhar, orçamentos a preparar - e todo o futuro já dado no presente imediato, sob a forma de prazos, de datas e de horários a cumprir - ônibus a tomar, ritmos a manter, trabalhos a acabar. Privados desse universo objetivo de incitações e de indicações que orientam e estimulam a ação e, através disso, toda a vida social, eles não podem viver o tempo livre que lhes é deixado apenas como tempo morto, tempo para nada, esvaziado de seu sentido.

Jogos de azar para matar o não-tempo

A violência é um meio de fazer alguma coisa, ao invés de nada, que causará sensação em qualquer hipótese, tanto no fracasso quanto no sucesso

Se o tempo parece aniquilar-se, é porque o trabalho é o suporte, senão o princípio, da maioria dos interesses, das expectativas, das exigências, das esperanças e dos investimentos no presente (e no futuro ou passado que ele implica); em resumo, um dos fundamentos maiores da illusio como engajamento no jogo da vida, no presente, como presença no jogo, e, portanto, no presente e no futuro, como investimento primordial que - todas as sabedorias sempre o ensinaram através da identificação do arrancar ao tempo com o arrancar ao mundo - faz o tempo, é o próprio tempo.

Excluídos do jogo, cansados de escrever ao Papai Noel, de esperar Godot, de viver nesse não-tempo em que nada acontece, em que não há nada a esperar, esses homens espoliados da ilusão vital de ter uma função ou uma missão, de ter que ser ou fazer alguma coisa, podem, para se sentir existindo e para matar o não-tempo, recorrer a atividades que - como na corrida de cavalos, no totocalcio e em todos os jogos de azar que são jogados em todas as favelas do mundo - permitem reintroduzir durante um momento, até o final da partida ou até domingo à noite, a expectativa, isto é, o tempo finalizado que é, por si, fonte de satisfação.

A violência para “causar sensação”

E para tentarem afastar o sentimento tão bem expresso pelos subproletários argelinos de serem o joguete de forças externas (“eu sou como uma casca embaixo d’água”), para tentarem romper com a submissão fatalista às forças do mundo, eles podem também, principalmente os mais jovens, buscar nos atos de violência - que valem mais, ou tanto quanto, por si mesmos do que pelos lucros que propiciam - um meio desesperado de se tornarem “interessantes”, de existirem diante dos outros, para os outros; em uma palavra, de terem acesso a uma forma reconhecida de existência social.

Não é o menor mérito do registro positivista o de nos deixar ouvir, melhor que os clamores indignados, o enorme silêncio dos desempregados

Profissionais da interpretação, socialmente mandatário para conferir sentido, facilitar o entendimento, pôr ordem, os sociólogos, sobretudo quando são adeptos conscientes ou inconscientes de uma filosofia apocalíptica da história, atenta às rupturas e às transformações decisivas, não são os mais indicados para compreender essa desordem por nada, senão pelo prazer, essas ações realizadas para que algo aconteça, para fazer alguma coisa ao invés de nada fazer quando não há nada a fazer, para reafirmar de forma dramática - e ritual - que se pode fazer alguma coisa, ainda que seja uma ação reduzida à infração, à transgressão e, portanto, que infalivelmente “causará sensação” em qualquer hipótese, tanto no fracasso quanto no sucesso.

Talvez haja, seja o que for que a esse respeito diga Marx, uma filosofia da miséria, que está mais próxima da desolação dos velhos de Beckett reduzidos à condição de mendigos e de palhaços do que do otimismo voluntarista tradicionalmente associado ao pensamento progressista. E não é o menor mérito do registro positivista o nos deixar ouvir, melhor que os clamores indignados ou as análises ponderadoras e racionalizadoras, o enorme silêncio dos desempregados e o desespero expresso por ele.

(Trad.: Iraci D. Poleti)