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Depois dos bombardeios norte-americanos e da entrada das tropas da Aliança do Norte em Cabul, os jornais do mundo inteiro publicaram fotos de sorrisos femininos que, supostamente, dariam ao conflito sua razão de ser
- (01/03/2002)
“A bandeira norte-americana flutua acima de nossa embaixada em Cabul (...). E, hoje, as mulheres do Afeganistão são livres”, insistiu George W. Bush em seu discurso sobre a situação da União, no dia 29 de janeiro de 2002. A “coalizão contra o terrorismo” teria feito a guerra para libertar as afegãs. Depois dos bombardeios e da entrada das tropas da Aliança em Cabul, os jornais publicaram fotos de sorrisos femininos que dariam ao conflito sua razão de ser.
Curiosa justificativa, se os mudjahidin, reinstalados no poder pelos aliados, não se comportam melhor que os taliban. Aliás, os inúmeros repórteres que estão no local não conseguem mais esconder a desconfiança dos habitantes de Cabul e de Jalalabad. Uma desconfiança baseada na experiência: entre 1992 e 1996, as tropas da Aliança do Norte (ou “Frente Unida”) perpetraram massacres e chacinas gratuitas, de prisioneiros e de feridos, aterrorizando e extorquindo os civis. Atualmente, isso se repete, quase de modo idêntico, num Afeganistão de novo dividido em feudos e onde os senhores da guerra ameaçam desencadear uma nova guerra civil1.
Os Estados Unidos pouco se interessam pelos direitos das mulheres, no Afeganistão, como no Kuait, na Arábia Saudita ou em outros países. Ao contrário, de modo consciente e voluntário, sacrificaram as afegãs a seus interesses. De onde vêm, afinal, os mudjahidin? Desde 1978, antes mesmo do exército soviético invadir o país, os chefes de tribo e as autoridades religiosas declaram a guerra santa contra o governo marxista de Nur Mohammed Taraki, que obrigava as moças a irem à escola, proibia o levirato2 e a venda das mulheres. Nunca houve tantas mulheres médicas, professoras, advogadas... como entre 1978 e 1992.
Aos olhos dos mudjahidin, os direitos das mulheres valem bem uma guerra... contra. A invasão soviética veio dar uma dimensão patriótica a essa luta. Com o apoio dos Estados Unidos, que consideram como amigos os inimigos de seus inimigos. Evidentemente, sabiam que os mudjahidin queriam controlar as mulheres. Mas os mudjahidin se opunham a Moscou - e era isso que contava.
Depois da retirada dos soviéticos, a guerra continuou, e principalmente contra os civis. Os soldados da Aliança do Norte saquearam casas e estupraram mulheres. Os chefes locais pilhavam caminhões, a cada cinqüenta quilômetros, a corrupção e a desordem impediam a aplicação da charia. O terreno estava preparado, então, para a chegada dos taliban, filhos espirituais desses mudjahidin, tão anticomunistas quanto seus pais, mas ainda mais fundamentalistas: bons candidatos à ajuda dos Estados Unidos, que estenderam seus dólares às madrasas (casas de estudos do Corão) paquistanesas, via Arábia Saudita.
Então os Estados Unidos sempre lutaram pelos direitos das mulheres? Não. Alguma vez eles já lutaram por? Não. Ao contrário, eles os pisotearam: como as mulheres afegãs eram defendidas por governos marxistas – aliados de um inimigo dos Estados Unidos – foi, realmente, necessário sacrificá-las. Afinal, não se pode permitir que os direitos humanos entravem a busca da hegemonia mundial. Os direitos das mulheres representam o mesmo que as crianças iraquianas: sua morte é o preço do poder norte-americano.
Como todas as feministas do mundo, em campanha há mais de dois anos contra o destino que os taliban reservaram às mulheres afegãs, espero que o governo instalado garanta os direitos das mulheres. Uma melhor melhor condição feminina poderia tornar-se um dos resultados não previstos dessa guerra: um benefício colateral, de certa forma. Vale esperar isso. Sem sonhar. O grupo de Burhanuddin Rabbani, presidente do governo reconhecido pela comunidade internacional, impôs a charia em Cabul, em 1992. E, em 1995, as tropas do mesmo Jamiat-i-Islami, sob direção do comandante Massud, entregaram-se a uma orgia de estupros e de assassinatos em Cabul.
Na seqüência das negociações de Bonn, duas mulheres passaram a integrar o governo, duas exiladas: uma do partido Hezb-i-Wahdat e a outra do partido Parchami. Ambos são acusados de ser “partidos mercenários e assassinos” pela Rawa, organização revolucionária das mulheres do Afeganistão que, há seis anos, trabalha com as mulheres refugiadas, em especial na educação de moças. Apesar de inimiga dos taliban, a Rawa protestou com todas as suas forças contra os bombardeios. Juntamente com outras organizações, pede que uma força internacional proteja o povo afegão dos “criminosos da Aliança do Norte3”.
O Jamiat-i-Islami, pressionado por instâncias internacionais, fez algumas concessões. Que cada um julgue. Uma semana após a tomada de Cabul, um dos porta-vozes desse partido declarava, na BBC World, que as “restrições” em relação às mulheres seriam suspensas - sem mais demora - e que “a burga não será mais obrigatória: o hidjab4 bastará”. O hidjab (no Irã se chama tchador) bastará. Será que estamos sonhando5?
Se as liberdades fossem realmente ampliadas, tornaria isso a guerra legítima? Quando se trata dos direitos humanos, a questão é sempre a mesma: o que há de pior que a guerra para uma população? Em que momento ela se torna preferível? Dizer que a guerra é benéfica para as mulheres afegãs é o mesmo que decidir que é melhor para elas morrerem sob as bombas, de fome ou de frio, do que viver sob os taliban. A morte seria preferível à servidão: assim decidiu a opinião ocidental... para as mulheres afegãs. Uma decisão que poderia ter sido heróica, se os ocidentais pusessem suas vidas na balança, e não as vidas das afegãs.
O modo irresponsável pelo qual se trata o álibi da “libertação das mulheres afegãs” ilustra a arrogância do Ocidente, que se atribui o direito de dispor como bem entende da vida dos outros. Isso impregna toda sua atitude diante das afegãs e, de forma mais geral, a atitude dos dominantes em relação aos dominados.
Proponhamos uma regra simples de moral internacional válida também para os indivíduos: que ninguém tenha o direito de tomar decisões, principalmente heróicas, quando outros pagarão por suas conseqüências. Somente a população que sofre a guerra pode dizer se ela vale a pena. Ora, nesse caso, aquela que decidiu fazer a guerra não a sofre, e aquela que sofre com a guerra não decidiu sobre ela. Por ora, as mulheres afegãs estão nas estradas, dentro das tendas, nos campos, aos milhões: um milhão de refugiados a mais do que antes da guerra fora das fronteiras, e um milhão de pessoas que tiveram que se deslocar no interior do próprio país6. Muitas correm o risco de morrer. Sem nenhuma garantia de que esse “sacrifício” lhes valerá direitos suplementares. Aliás, será que se deve falar de sacrifício quando elas não o escolheram?
Um mínimo de decência exigiria que os aliados parassem de clamar que elas tiveram que agüentar esses sofrimentos para seu bem. Que se abstenham de pretender que é em nome de sua liberdade que se lhes tira o direito de escolher seu destino, inclusive o de viver. Há razões para temer, ao contrário, que essa ladainha vire moda; é grande a lista dos países aos quais a coalizão dos aliados contra o mal decidiu levar o bem pela força. E, é claro, qualquer semelhança com acontecimentos históricos passados – tão passados que lembrá-los parece fora de moda –, qualquer semelhança com as guerras coloniais, por exemplo, é pura coincidência.
A guerra que visa ao controle e à exploração jamais propiciará o avanço dos direitos humanos. Porque esses bombardeios, em nome da civilização, jogaram no esquecimento muitos princípios reivindicados por essa mesma civilização. As convenções de Genebra, declaradas sem efeito pelos aliados – cúmplices, aliás, da carnificina em Mazar e de outros7, por ocasião das manobras norte-americanas. Os Estados Unidos inventam novas categorias pseudojurídicas, como os “combatentes ilegais” de Guantanamo, que nenhum direito - nem nacional, nem internacional, nem comum, nem de guerra - cobriria! As liberdades públicas, orgulho de nossas democracias, anuladas; o direito internacional, mortalmente ferido - o grande corpo agonizante da ONU está aí para prová-lo. Só uma cooperação verdadeira e pacífica entre as nações fará com que os direitos humanos progridam. Essa cooperação não está na ordem do dia. Cabe a nós colocá-la em pauta. (Trad.: Iraci D. Poleti)
1 No final de janeiro, o chefe dos serviços secretos, Gul Agha Sharzai, disputava a cidade de Herat com o senhor da guerra Ismaïl Khan, Globe and Mail, (lieu de publication, 22 de janeiro de 2002. 2 Obrigação que tem a viúva sem filhos de se casar com o irmão de seu finado marido. 3 Ver www.rawa.org, 10 de dezembro de 2001. 4 Mantô que cobre o corpo e a cabeça, inclusive o rosto, e não um simples lenço. 5 Ver dois documentários “Sorties de ténèbres?”, de Saira Shah, e “Femmes de Kaboul”, de Antonia Rados, apresentados no canal Arte, 23 de janeiro de 2002. 6 Ver www.hcr.org e www.msf.org. 7 Ler, de Robert Fisk “We are the War Criminals Now”, The Independent, Londres, 29 de novembro de 2001. Consultar também os sites de Human Rights Watch, www.hrw.org e de Amnesty International, www.amnesty.org