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A Enron deu início a uma série de catástrofes que levou à bancarota vários gigantes empresariais. Com eles, ruiu a imagem idílica dos mercados financeiros
- (01/08/2002)
A imagem idílica dos mercados financeiros norte-americanos fazia parte do discurso convencional sobre a nova economia e a globalização: os empresários “criam valor” e se vêem conseqüentemente remunerados; as stock-options e os regimes de aposentadoria aliam os interesses dos empregados aos dos acionistas; a democratização das finanças permite estender os benefícios dessa “criação de valor” a um maior número de pessoas; inúmeros contrapesos (leis, analistas, conselhos de administração, fiscais de contas, imprensa) garantem a integridade dos mercados1.
A década da expansão econômica – março de 1991 a março de 2001 – sem dúvida foi marcada por escândalos (casos de fraude ou de especulação, particularmente com produtos derivados), mas estes eram atribuídos a algumas pessoas indesejáveis. O vocábulo utilizado – rogue (literalmente crápula) – sugeria insubordinação e algo atípico. Esses acidentes de percurso não colocavam em questão o discurso corrente, pois constituíam realmente a exceção que confirma a regra, e comprovavam a capacidade do sistema de se auto-regular. Cada vez que isso acontecia, depois de um breve período de incerteza, os mercados recomeçavam às mil maravilhas.
Estimulados pela boa saúde de sua economia e por mercados financeiros que desafiavam as leis da gravidade, os dirigentes norte-americanos repetiam sem parar para todo o mundo que era urgente adotar os métodos anglo-saxões: desmantelar os setores do Estado para liberar as forças do mercado e acabar com o “capitalismo de compadres”, gerador de uma corrupção generalizada. As elites globalizadas e seus menestréis retomaram esse refrão. Alain Minc, por exemplo (que atualmente tem dado menos declarações), explicava: “O êxito dos Estados Unidos exerce uma pressão difusa para nos obrigar a combater nossa própria rigidez. Comemoremos o milagre; aceitemos o mistério; e, sobretudo, sigamos o exemplo2.”
O milagre foi muito comemorado, o exemplo amplamente seguido. No sentido do mimetismo cego, ninguém foi mais longe que Jean-Marie Messier, que se considerou “o mais norte-americano dos patrões franceses”. Depois de uma breve ascensão, chegou ao destino dos patrões “visionários” de quem ele imitava os métodos: a descida aos infernos do grupo Vivendi coincidiu com a ruína de vários símbolos da economia milagrosa.
A série de catástrofes teve início no dia 2 de dezembro de 2001, com a estrondosa falência da gigante da energia, Enron. Em poucos anos, a empresa texana atingira o sétimo lugar entre as empresas norte-americanas, com um faturamento global superior a 100 bilhões de dólares. Para os teóricos da administração, esse florão da nova economia representava o futuro. Detentor de poucos ativos reais, esse agente de um novo gênero podia, graças aos mais complexos balanços financeiros e aos mais audaciosos conceitos, criar “valor” em toda parte e permanentemente. Não havia business school que não glorificasse o caso Enron, em matéria de estratégia, finanças e ética. De 1996 a 2001, a firma de Houston recebeu da revista Fortune o título de empresa mais inovadora. Em 2000, o Financial Times designou-o “grupo energético do ano”, ao mesmo tempo que The Economist qualificou seu patrão, Kenneth Lay, como “messias da energia”.
“Empresa cidadã”, a Enron pertencia de corpo inteiro ao establishment, distribuindo generosamente fundos, favores e louvores. Seu dono, Kenneth Lay, padrinho financeiro de George W. Bush e seu amigo íntimo há mais de vinte anos, forneceu-lhe (a título pessoal e por meio de sua empresa) mais de 2 milhões de dólares3. Conselheiro muito ouvido quando o atual presidente era governador do Texas, desempenhou um papel fundamental na elaboração da política energética do novo governo. O secretário de Estado das Forças Armadas, Thomas White, ex-dirigente da empresa, prometera, desde sua nomeação, “aplicar os métodos do setor privado ao setor público”.
Menos de um ano antes da falência, Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve Bank (Banco Central norte-americano), recebeu o “Prêmio Enron”, conferido pelo Instituto James A. Baker III (nome do secretário de Estado do ex-presidente George H. Bush). Mas a Enron, campeã absoluta da “gestão de risco”, tinha corrido riscos consideráveis que balanços financeiros incompreensíveis tentavam dissimular. A queda foi tão imprevista quanto brutal4. O caso abalou uma das bases do credo da “nova economia”: o princípio do win-win (“todo mundo sai ganhando”). Entre 1998 e 2001, o valor da ação triplicou, contribuindo para o enriquecimento dos dirigentes, dos acionistas e dos empregados, de quem toda a poupança-aposentadoria era investida nas ações da empresa (stock options). Todo mundo não saiu ganhando até o final... Quando, em poucos meses, 98% do “valor” da Enron se dissipou, os principais diretores fizeram acordos de demissão com indenizações suntuosas; quanto aos iniciados, ficaram sem a garantia de suas ações, enquanto os empregados descobriram que um regulamento interno os proibia de venderem as suas.
Na seqüência, o gigante da revisão contábil, Arthur Andersen – que desempenhou um papel ativo na construção de balanços financeiros duvidosos e, sobretudo, na destruição de documentos comprometedores – caiu em desgraça. Em seguida houve os casos Tyco, Global Crossing, Qwest, Adelphia Communications, Merck e Halliburton (cujo dono, durante a maquiagem das contas, era ninguém menos que o atual vice-presidente, Richard Cheney). Em todos esses casos, os dirigentes pilharam suas empresas com a cumplicidade ativa dos supostos contrapesos. A cada revelação, a fraude parece abarcar quantias maiores: a Enron dissimulou “apenas” 2 bilhões de dólares de dívidas; a WorldCom deixou de contabilizar 3,85 bilhões de dólares relativos a custos; a Xerox superfaturou suas vendas em 6 bilhões de dólares; a Merck contabilizou um faturamento global de 12,4 bilhões de dólares em negócios fictícios.
Essas empresas compartilham várias características. Em primeiro lugar, diretores super-conhecidos dos meios de comunicação e um discurso bem enganoso sobre a inovação, a governança da empresa, a ética e a responsabilidade. Na realidade, impunha-se uma política de comunicação “agressiva”: somente as operações na Bolsa refletiam o valor criado pelos dirigentes (e sua remuneração dependia dele); portanto, era preciso “gerenciar” essas operações, cultivando assiduamente a imprensa e os analistas. Dizer que os jornalistas se dispuseram a isso é dizer pouco...
A outra característica comum a essas empresas delinqüentes é muitas vezes terem apelado para os grandes escritórios de consultoria (principalmente o McKinsey, de maior prestígio) e terem generosamente remunerado, sob pretextos variados, os grandes gurus do governo e os mais reputados economistas, para acobertar como “estratégia inovadora” políticas perigosas de aceleração do processo, e apresentar megalômanos como “visionários”.
Seria ainda possível fingir que os escândalos seriam proeza de uns poucos indesejáveis? Mesmo os que, anteriormente, louvavam os contratos de empresas falidas, mencionam a “corrupção generalizada” e uma “crise sistêmica5”. Setores inteiros da economia (Internet, telecomunicações) e profissionais (analistas, revisores, consultores, imprensa financeira, gurus do governo) vêem seus cabeças envolvidas nessa aventura de mistificação.
Como se chegou a isso? Durante toda a última década, a liberalização econômica acelerou-se, as barreiras caíram e as autoridades tutelares viram seu financiamento e seus poderes diminuírem em benefício de uma regulamentação pelo mercado, baseada nos controles internos e nos “códigos de bom comportamento”. Quando as “muralhas da China” (entre atividades de consultoria e de contabilidade no caso das firmas de auditoria; entre bancos de depósitos e de investimento no dos estabelecimentos financeiros) foram derrubadas em nome da livre-concorrência e de supostas sinergias, o sistema foi metamorfoseado.
“Profissões” que até então levavam a sério seus códigos de ética transformaram-se em “centros lucrativos”. Entre os contadores, que outrora zelavam pela sinceridade das contas, a imaginação tomou o poder: “métodos agressivos”, no limite da legalidade, perverteram os princípios estabelecidos. Com a ajuda de analistas promovidos à posição de propagandistas, os bancos financiaram operações de fusão e de aquisição condenadas ao fracasso, mas geradoras de grandes rendas. Quanto às tão celebradas stock-options, contribuíram na era do dinheiro-rei para o grande aumento dos lucros em um curto prazo e para a manipulação das contas6.
O atual diretor-presidente da France Télécom, Michel Bon, explicou em dezembro de 1999 à revista mensal Capital: “No dia 20 de setembro de 1997, a France Télécom entrou para o mercado de capitais. Quatro milhões de franceses – e três quartos dos empregados – compraram suas ações. Mais que um acontecimento, é um símbolo: o reconhecimento de que o mercado tornou-se o melhor meio de servir seus clientes (há dez anos, falaríamos de usuários). Espero que essa realidade atinja logo os serviços não-mercantis, como a educação e a saúde.” A embriaguês de Bon não é mais aceita. Será que suas esperanças também não?
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 - Ler, por exemplo, de Thomas Friedman, The Lexus and the Olive Tree, ed. Farrar, Straus and Giroux, Nova York, 1999.
2 - In Richard Farnetti e Ibrahim Warde, Le modèle anglo-saxon en question, ed. Economica, 1997.
3 - Ler, de Charles Lewis, The Buying of the President 2000, ed. Avon Books, Nova York, 2000.
4 - Ler, de Tom Frank, “Enron aux mille et une escroqueries”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2002.
5 - Business Week, “How Corrupt is Wall Street?”, 12 de maio de 2002, e Fortune, “System Failure”, 24 de junho de 2002.
6 - Ler “Dow Jones: plus dure sera la chute”, Le Monde diplomatique, outubro de 1999.