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POLÔNIA

A doença do neoliberalismo

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Em pouco mais de dez anos, o materialismo (não tão dialético) de ontem deu lugar, na Polônia, ao materialismo (este, bem concreto) do rei-dinheiro de hoje. O resultado não é promissor: uma nação decadente, à mercê da corrupção, beirando o limiar da pobreza

Bernard Margueritte - (01/10/2002)

O sistema neoliberal – devidamente globalizado – une o ineficaz ao sórdido: ele não é apenas imoral; é também economicamente desastroso

A Polônia é uma incrível receita de globalização. Tome um país que, em 1989, passa do comunismo à democracia, após uma revolução não-violenta, fixando como objetivo uma política baseada no respeito pelos valores de dignidade e de solidariedade. Depois, sem consultar o povo, aplique o habitual tratamento de choque neoliberal, feito de “rigor econômico” e “pensamento único”. E, onze anos depois, contemple o quadro: uma nação desmoralizada, desigualdades onipresentes e uma economia esgotada. É absolutamente verdade que esse sistema une o ineficaz ao sórdido: ele não é apenas imoral, é também economicamente desastroso.

Como é possível afirmar uma coisa dessas? Olhe para Varsóvia, todos esses imóveis de escritórios ultra-modernos, hotéis de luxo, lojas de Dior e Mercedes! É claro que a capital e, mais ainda, as cidades do interior, mudaram muito. Desapareceram o clima cinzento de antigamente, as lojas vazias, as filas de espera. Há ainda pouco tempo, poderia se acrescentar: entre nas livrarias, você pode finalmente comprar qualquer livro! Isso não se diz mais, pois, amargo paradoxo, lê-se menos agora, que tudo está disponível, do que antes, quando os melhores livros tinham que ser lidos escondidos. Os que têm dinheiro não se interessam pela cultura; os que a amam ficaram, muitas vezes, pobres.

“Robin Hood” às avessas

Os teatros estão morrendo, a produção cinematográfica está periclitante e caberia perguntar quando foi publicado o último bom livro...

Teríamos coragem para o dizer? A vida cultural não é mais o que era sob o comunismo, apesar da censura (ou, talvez, graças à revolta que ela suscitava). Os teatros estão morrendo, a produção cinematográfica está periclitante, longe das obras-primas de Andrzej Wajda e Krysztof Zanussi. Caberia perguntar quando foi publicado o último bom livro. Logicamente, subsistem alguns oásis de cultura lutando contra ventos e marés, sobretudo na música, como por exemplo a Ópera de Câmara de Varsóvia. Porém, pouco importa: a palavra de ordem é ganhar dinheiro, o mais rápido possível e de qualquer maneira. Um materialismo afastou o outro – e o do dinheiro-rei não parece melhor do que o materialismo dialético de ontem.

Como era bela a oposição nos tempos do comunismo! Como era maravilhoso o Solidarnosc! Todos que amaram a Polônia em luta não a reconhecem mais. Um amigo norte-americano, que trabalhou em Varsóvia durante quinze anos, voltou, agora, como conselheiro da embaixada. E lamenta-se: “Queria reencontrar o país em que se podia discutir noites inteiras com intelectuais fascinantes, porém nesta Polônia ninguém mais tem tempo para nada, tudo gira em torno do lucro, há McDonald’s em cada canto da rua: virou uma América de pobres!”

É evidente que nem tudo vai mal para todos. De 10% a 15% das pessoas vivem bem, às vezes, muito bem. Se um professor da universidade ganha 600 euros (cerca de 2.300 reais), um alto executivo ganha tanto ou mais que um colega seu ocidental. Tudo está a serviço dessa “elite” do dinheiro. Proclama-se o neoliberalismo, mas o Estado não desapareceu: ao invés de preocupar-se com os mais desfavorecidos, foi posto a serviço das empresas e dos ricos (isenção de impostos para empresas, redução de impostos para os ricos, dilapidação dos bens públicos para o enriquecimento do setor privado). Um Robin Hood às avessas...

Os tentáculos da corrupção

É evidente que nem tudo vai mal para todos. De 10% a 15% das pessoas vivem bem. Um alto executivo ganha tanto ou mais que um colega seu ocidental

O excelente sociólogo Jadwiga Staniszkis fala de “capitalismo de Estado”: vários ex-diretores de empresas comunistas dirigem atualmente empresas particulares. Os barões do antigo regime saem-se bem: controlam dois terços dos novos negócios e metade da administração. Aliás, vêm se entendendo muito bem com os antigos líderes da oposição –também rapidamente enriquecidos. Uns e outros partilham os suculentos mercados públicos. A nova nomenklatura caminha de braços dados.

Poucos dirigentes escapam da amoralidade e da corrupção reinantes. Na prática, não se consegue um contrato sem que os dirigentes recebam sua parte do bolo. As leis, que supostamente o deveriam evitar, são contornadas sem que ninguém reclame. Um empresário do sudoeste do país a quem perguntamos o que iria fazer depois da introdução das novas leis sobre a transparência da concessão de contratos públicos fez um olhar consternado e depois caiu na risada: “Mas de onde você vem? Somos três firmas sérias na região. Dividimos os mercados e pagamos juntas a quem de direito. As licitações são totalmente falsas, é claro.” A corrupção gangrena todos os níveis, a ponto que não ser possível obter um documento qualquer de uma prefeitura em prazos aceitáveis sem pagar o funcionário responsável. Um jornal publicou, recentemente, sem nenhuma conseqüência, os preços de compra dos árbitros de futebol, mais altos conforme a divisão.

Capital internacional no poder

A descentralização revelou-se uma calamidade: desembocou na disseminação de inúmeras máfias locais que demarcaram seu território. Prova disso são as fortunas amealhadas em poucos anos pela maioria dos políticos locais... O diretor de uma firma de relações públicas encarregado pela União Européia de introduzir, com todas as despesas pagas, projetos que permitem às municipalidades melhorarem a transparência e os laços com o cidadão lamentava-se de não encontrar cidades interessadas...

O Estado de direito continua sendo uma ilusão. A justiça parece quase sempre preferir o ladrão à vítima. Aliás, sua lentidão faz com que seja preferível fazer-se entender “numa boa” – inclusive por meio de uma máfia – do que tentar fazer respeitar seus direitos. Graças à selva liberal, qualquer pessoa que tenha recursos, obtém autorização de fazer não importa o quê, inclusive construir um palácio de concreto no meio de um parque nacional!

O Ocidente contribuiu amplamente para essa depravação. Em 1990, um “notável” ocidental dizia: “O Solidarnosc era bem interessante como máquina de guerra contra o comunismo, porém, agora, falando francamente, já se passou da hora de falar em justiça social e participação sindical!” O capital internacional “abocanhou” sua pequena Polônia. Todas as empresas que valiam alguma coisa foram compradas e os dirigentes poloneses ficaram muito felizes por poderem tampar os buracos do orçamento com a renda da privatização.

Dar aos ricos e tirar dos pobres

Graças à qual, a Polônia se iludiu por algum tempo – a imprensa ocidental falava até de “milagre”. Mas a fonte secou. Nesse meio tempo, as firmas ocidentais controlam a quase totalidade do setor bancário, dois terços das empresas e quase todos os meios de comunicação. O que sobrou da Polônia, rifada – e nem mesmo pela melhor oferta?

Poucos dirigentes escapam da amoralidade e da corrupção reinantes. Na prática, não se consegue um contrato sem que os políticos recebam sua parte do bolo

O outro lado da moeda é um decréscimo de 1% no crescimento, um déficit de comércio e do orçamento cada vez mais dramático e uma taxa de desemprego que se aproxima dos 20%. Metade das famílias vive no limiar do mínimo vital ou abaixo. Os camponeses vegetam na miséria; os aposentados vagueiam pelas ruas, catando lixo doméstico. Uma vez mais, a falência neoliberal explode: de nada serve dar todas as vantagens aos ricos e às empresas se não há melhoria das condições de vida da maioria e não se cria um mercado estimulante da economia. No fim das contas, os próprios produtores custeiam as despesas.

O Estado não tem dinheiro. Como poderia ter, se está dilapidado? Passam, então, a ser continuamente reduzidos os benefícios sociais, o auxílio-doença, o seguro-desemprego. As primeiras decisões tomadas pelo novo governo “de esquerda” foram precisamente nesse sentido. Uma vez que se dá aos ricos, é preciso economizar com os pobres! Todos os governos – tantos os ligados ao Solidarnosc, como à esquerda pós-comunista – adotam a mesma política há onze anos. Chegar ao poder não significa mudar de política, mas ter acesso ao bolo.

O rei está nu

Governos e dirigentes políticos de todos os partidos (com raras exceções) estão sob controle. A começar pelos ex-comunistas: habituados, antigamente, a executar as diretivas do Kremlin, não lhes é difícil obedecer às imposições do Banco Mundial... O princípio continua o mesmo, mas, desta vez, há dinheiro a ser ganho. Não há o que temer por parte da mídia – ela aprova: o sub-editor de um grande semanário qualificou recentemente de “analfabetos” os adversários do neoliberalismo; outro jornal qualificou os participantes do forum de Porto Alegre como “hooligans e homossexuais”.

Em longo prazo, o mais grave é que todos esses governos reduziram ao mínimo as despesas orçamentárias referentes à educação, à pesquisa, à cultura e à saúde. Será preciso arcar com as conseqüências disso em dez anos, e o despertar será duro. Agora, todos os pesquisadores fogem para o estrangeiro, mais do que sob o comunismo. Um jovem executivo trabalhando para uma empresa ocidental diz: “Por que deveríamos gastar dinheiro com pesquisa e educação? Não precisamos de pesquisadores: as tecnologias de ponta são fornecidas pelas empresas ocidentais que investem aqui; o que precisamos é de 10% de brilhantes administradores de empresas e uma massa operária mal paga para atrair as empresas do Oeste.”

Camponeses vegetam na miséria, aposentados vagueiam pelas ruas, catando lixo doméstico. Uma vez mais, explode a falência neoliberal

Segundo uma pesquisa recente, 56% dos poloneses avaliam que os anos da década de 70 foram os melhores do pós-guerra; apenas 20% mencionam a época atual. Na realidade, o materialismo neoliberal fracassou na Polônia tão tragicamente quanto o materialismo comunista. A professora Jozefina Hrynkiewicz, reitora da Escola Superior de Economia e Ciências Humanas, escreveu: “A concepção liberal, assim como a concepção socialista, são conceitos utópicos... Dar marcha à ré depois da realização de utopias sociais é muito custoso para o país. A Polônia experimenta hoje o custo do abandono da utopia socialista. Isso, infelizmente, não nos impediu de cairmos na utopia liberal, também danosa.” O rei está nu. Foi traída a revolução do Solidarnosc que, no entanto, colocara a Polônia na vanguarda da busca por uma nova política e por uma nova economia baseadas nos valores morais e espirituais.

O último mito em moda

A própria Igreja, garantia tradicional do sentimento nacional, não escapa do mal-estar neoliberal. Parece longe do compromisso de João Paulo II que, quando de sua recente visita, confirmou que depois de ter contribuído para abater o monstro do comunismo, pretendia consagrar seus últimos anos à luta contra a hidra do capitalismo neoliberal, a outra face da mesma moeda materialista. Lembrou a seus compatriotas que é preciso construir um programa baseado na misericórdia, na justiça social e na solidariedade. “Eu sei”, disse, “que são inúmeros os que observam e julgam de maneira crítica um sistema que tenta conquistar o mundo e que se inspira numa visão materialista do homem... justamente no momento em que uma barulhenta propaganda do liberalismo, de uma liberdade sem verdade nem responsabilidade, é reforçada também em nosso país”. O papa lembrou que a Igreja deve preocupar-se, antes de tudo, “com os que estão desempregados, com os que vivem em uma pobreza cada vez maior, sem perspectivas de melhoria de seu destino ou do de seus filhos”. “Lamentavelmente”, admitiu o arcebispo Jozef Kowalczyk, núncio apostólico, “ninguém, mesmo no episcopado polonês, compreende a mensagem do papa”.

Apelar para quê? O último mito em moda – a adesão à União Européia – supostamente resolveria todos os problemas. Mas o que poderá fazer na União um país atormentado por tamanha desordem? Os dirigentes poloneses lutam para conseguir mais fundos europeus, porém não chegam a utilizar os que já lhes foram concedidos: de 1 bilhão de euros (cerca de 3,8 bilhões de reais), menos da metade foi investida.

Ainda há fogo sob as cinzas...

Não há o que temer por parte da mídia: o sub-editor de um grande semanário qualificou recentemente de “analfabetos” os adversários do neoliberalismo

Além disso, a adesão de uma Polônia exaurida poderia bem representar para a União um presente de grego1. Não só pelos novos problemas que criará, especialmente para os camponeses da França, mas também porque o país, de um pró-americanismo primário, pretende ser o cavalo de Tróia de Washington na União Européia. Leszek Balcerowicz, por exemplo, presidente do Banco Nacional, não esconde seus sentimentos: revelou recentemente que a Polônia deveria entrar para a União Européia, embora, em sua opinião pessoal, o modelo europeu ainda fosse um pouco social e, portanto, bem inferior ao modelo americano nu e cru!

Esse país rifado, vendido ao estrangeiro, corrompido, não é a Polônia. A grande palavra de ordem do Solidarnosc, em 1980, afirmava: “Que a Polônia seja a Polônia!” Continua atual. O movimento caminha. Basta ir às siderúrgicas e às minas, ou às reuniões dos desempregados nas pequenas cidades, para se dar conta de que ainda há fogo sob as cinzas. A chama do Solidarnosc se reacenderá. O país não morreu. Foi essa é a vontade expressa pelos três milhões de pessoas que participaram da missa papal em Cracóvia... Amanhã rejeitará o neoliberalismo, como rejeitou o comunismo, e reconstruirá uma política e uma economia baseadas no respeito da pessoa humana, na dignidade e na justiça social. A Polônia ainda nos surpreenderá e se tornará um exemplo e uma inspiração. Eu aposto nisso.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - Ler, de Bruno Drweski, “L’Union européenne fait peur aux Polonais”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2001.




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