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O PÓS-GUERRA IMPERIAL

Justiça internacional: entre a política e o direito

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O direito internacional evoluiu o suficiente para garantir um certo grau de sanções contra os países e governantes criminosos, sem ferir o princípio de soberania e lutar contra as violações e impunidades sem desestabilizar as relações internacionais

Anne-Cécile Robert - (01/05/2003)

O Tribunal Penal Internacional, em vigor desde julho de 2002, tem campo de ação restrito aos crimes contra a humanidade, de genocídio e de guerra

Serão os responsáveis pela guerra ilegal travada no Iraque julgados algum dia? Poderá o próprio fato de recorrer à força armada fora dos casos previstos pela Carta das Nações Unidas conduzir a um processo perante a justiça internacional? Que jurisdição internacional julgará crimes de guerra e violações de direitos humanos cometidos no território do Iraque? Provavelmente nenhuma, pois, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, cada um a seu modo, são potências dominantes.

No entanto, isso não quer dizer que nenhuma forma de sanção afetará esses países e seus dirigentes, pois a justiça internacional evoluiu consideravelmente, inclusive no campo penal. Apesar dos acontecimentos no Iraque, a submissão voluntária dos Estados a regras comuns constitui uma tendência histórica. E é certamente nessa dialética de manutenção das soberanias nacionais e de promoção de regras superiores destinadas a erradicar os comportamentos contrários ao direito que se desenvolverão a justiça e a paz mundiais, muito mais do que no sacrifício geral e incondicional das soberanias.

O direito penal internacional abre a possibilidade de julgar - sob certas condições - chefes de Estado e dirigentes políticos. A prisão do general Pinochet - protegido pela imunidade de sua condição de senador chileno - na Grã-Bretanha em 1998 a pedido de um juiz espanhol ilustra isso, ainda que, in fine, não tenha resultado em um processo. Mas, são sobretudo os estatutos do Tribunal Penal Internacional (TPI), cujos juízes foram empossados em 11 de março de 2003, justamente quando se precipitava a guerra no Iraque, que atestam isso. A qualidade de chefe de Estado ou de governo não impede a ação penal por derrogação do princípio das imunidades diplomáticas. Contrariamente à Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão das Nações Unidas criado em 1946 e que julga os atos dos Estados, o TPI julgará as pessoas à maneira dos tribunais ad hoc instaurados para a ex-Iugulsávia1 e para Ruanda. Seu campo de intervenção é restrito aos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão2 cometidos em qualquer lugar que seja, desde sua entrada em vigor em 1º de julho de 2002.

Pressões indiretas contra os criminosos

Os signatários devem entregar ao tribunal qualquer acusado que esteja em seu território, confinando então os criminosos às suas pátrias de origem

Contudo, apesar dessas inovações, a ordem jurídica internacional permanece alicerçada no princípio de soberania e os países, assim como seus dirigentes, conservam meios eficazes de proteção. Por exemplo, o TPI só pode intervir se o Estado no qual o crime foi cometido ou aquele de que o acusado é natural tenham ratificado seu estatuto3. A Grã-Bretanha o ratificou em 2001, contrariamente aos Estados Unidos do presidente George Bush, que não só se recusaram a fazê-lo, mas cancelaram a assinatura aposta in extremis por William Clinton. A Rússia, a China, Israel e a Turquia também não fizeram os procedimentos de formalização. No entanto - fato novo - a não ratificação não protege os governantes de forma alguma. Na realidade, a localização do crime em um país coberto pela jurisdição do Tribunal basta para lhe conferir competência4. Além disso, todos os Estados-partes devem cooperar com o TPI e, especialmente, entregar-lhe qualquer acusado que se encontre em seu território. Portanto, os criminosos ficam, pelo menos, condenados a permanecer em casa! Por isso Washington tratou de fazer com que todos os governos assinassem tratados bilaterais pelos quais eles renunciam a entregar cidadãos norte-americanos. É lamentável, - de todos os pontos de vista, inclusive devido à natureza do regime - que também o Iraque não tenha ratificado o estatuto do TPI.

Blair e os dirigentes políticos britânicos poderiam, enquanto representantes de um Estado-parte, ter que comparecer perante o Tribunal. Contudo, este só pode intervir se a justiça nacional estiver incapacitada de agir ou demonstrar evidente má vontade para tanto. A aplicação dessa cláusula, que colocaria ao procurador da CPI complicados problemas de prova, pelo menos obriga os tribunais britânicos a intervirem contra os dirigentes implicados.

A proteção do princípio de soberania

O princípio de soberania serve para evitar intervenções arbitrárias das grandes potências, como guerras com objetivo de mudar o regime de um Estado

A Corte Internacional de Justiça (CIJ) pode, quanto a ela, julgar a legitimidade do recurso de Estado ao poder armado e o respeito ao direito da guerra. Ela se prepara, por exemplo, para julgar a ação impetrada pela Iugoslávia contra a intervenção internacional no Kosovo, em 1999; intervenção também decidida sem concordância do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Contudo, a CIJ só pode intervir com a anuência dos Estados, que podem tanto reconhecer sua competência permanente e incondicional para qualquer litígio - Cláusula Facultativa de Jurisdição Obrigatória (CFJO) - quanto aceitar pontualmente esta jurisdição em um caso determinado5.

Em 1946, os Estados Unidos subscreveram a (CFJO), mas voltaram atrás dessa decisão após terem sido condenados, em 1986, diante da acusação pela Nicarágua por “atividades militares e paramilitares” contra aquele Estado. Washington não poderia, portanto, ser levado diante da Corte pela operação no Iraque. Ao contrário, a Grã-Bretanha poderia ser condenada se um país que reconheceu a CIJ recorresse a essa Corte. Na realidade, é o único dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança a reconhecer a competência permanente da Corte6. Entretanto, se Londres fosse condenada, a CIJ não teria nenhum meio coercitivo de fazer executar sua decisão - fazer cessar as violações ou impor medidas de proteção ao direito -, da mesma forma que não pôde fazer ser respeitada sua sentença no caso da Nicarágua, contra os Estados Unidos. O Conselho de Segurança poderia ser acionado, mas nesse caso, o veto poderia bloquear tudo.

A proteção dada pelo princípio de soberania não poderia suspender nem ser condenada a priori. Na realidade, ela não constitui a simples sobrevivência de uma ordem antiga, mas um princípio estabilizador de uma sociedade internacional que permanece “anárquica”. Assim, o princípio de não-ingerência nos assuntos internos dos Estados – questionado pelo Conselho de Segurança desde o final da guerra fria em nome do direito humanitário – foi progressivamente elaborado, no início do século XX, para impedir intervenções arbitrárias das grandes potências. A Carta considera, aliás, ilegítima uma guerra travada com o objetivo de mudar o regime político de um Estado (trata-se, contudo, de um dos objetivos anunciados por ocasião da intervenção americano-britânica no Iraque).

O mito da comunidade internacional

Não existe uma verdadeira “comunidade internacional” que justificasse o abandono incondicional do princípio de soberania e adoção de um juiz supranacional

Da mesma forma, as imunidades diplomáticas, muitas vezes contestadas por associações humanitárias, eram originalmente destinadas a facilitar as relações entre os Estados protegendo seus representantes de perseguições perturbadoras. A Corte de Apelação relembrou isso, em 13 de março de 2001, ao declarar a justiça francesa incompetente para julgar Muamar Khadafi pelo atentado cometido contra um DC-10 em 19897. Progressivamente os textos internacionais - especialmente os estatutos do TPI - excluem as imunidades para os “crimes mais graves” (crimes contra a humanidade, de guerra ou contra a paz). Sua aplicação depende de medidas de transposição para o direito nacional que os governos são reticentes em adotar.

Os Estados são teoricamente obrigados a adaptar suas legislações para fazer respeitar o direito internacional. A Bélgica, por exemplo, adotou a chamada lei de “competência universal”, que permite a seus tribunais julgar criminosos estrangeiros por crimes cometidos no exterior; lei que, entretanto, foi revisada em abril de 20038. Foram condenados, por exemplo, os responsáveis pelo genocídio em Ruanda e um militar congolês. Essa legislação foi criticada por poder perpetuar relações de força do tipo colonial, como as que ligaram Bruxelas à África central9. Algumas associações, por exemplo, entraram com uma ação, na Bélgica – por enquanto sem resultado – contra Ariel Sharon pelos crimes de guerra e contra a humanidade em decorrência dos massacres cometidos nos campos da Sabra e Chatila, em 1982.

Não existe, contrariamente ao uso abusivo do termo, uma verdadeira “comunidade internacional” que justificasse o abandono incondicional do princípio de soberania em proveito de um juiz supranacional. É verdade que, nas sociedades nacionais, as relações de força e as desigualdades não impedem o exercício de um poder judiciário. Contudo, para Olivier Corten, professor de direito internacional, a diferença entre os dois é importante: essas sociedades podem “pelo menos [...], o mais freqüentemente possível, se apoiar em uma coesão ideológica e cultural forte, o que não é o caso do cenário internacional, onde é possível falar, no máximo, de uma ‘sociedade’ em vias de consolidação. Se o acordo pode, como no interior dos Estados, ser ali obtido com base em certas regras e valores fundamentais, é a diversidade maior que reina quando se trata de interpretar concretamente esses valores de referência10”.

Choque entre o fato jurídico e o político

É necessário lutar contra as violações do direito e as impunidades, mas a justiça não se deve estender de forma a desestabilizar as relações internacionais

Esta preocupação é considerada pelos estatutos do TPI que prevêem, por um lado, que a composição do Tribunal deve refletir a diversidade dos sistemas de direito e, por outro lado, que o Tribunal só intervirá em caso de abstenção das jurisdições nacionais. Esta última cláusula pode, no entanto, revelar-se discriminatória em relação a países pobres cujos sistemas judiciários raramente estão aptos a assegurarem uma boa administração da justiça. Aliás, não é desejável que a justiça internacional seja apenas um instrumento a mais a serviço das grandes potências: pode-se imaginar que os anglo-americanos acabarão julgando os dirigentes iraquianos como a “comunidade internacional” julga os crimes de guerra sérvios, poupando os da Otan.

A justiça internacional se choca, em certos casos, com o fato de o jurídico contrariar o político. A tentativa de julgamento do general Pinochet, por exemplo, ia de encontro a acordos negociados pela sociedade chilena para sair da ditadura; da mesma forma, a prisão, em 1996, do general sérvio Djordje Djukic pelo TPIY fragilizava os acordos de paz de Dayton. Ainda que seja necessário lutar contra as violações do direito e as impunidades, a justiça não se deve estender de forma a desestabilizar as relações internacionais. Ademais, o que dizer de uma ação movida contra um presidente democraticamente eleito? A organização britânica Judicial Watch, por exemplo, entrou com uma ação junto à Europol e à Interpol contra o presidente francês Jacques Chirac por “proliferação nuclear11”. Independentemente da pertinência ou não da acusação, é o sufrágio universal (na democracia, a soberania nacional é, antes de tudo, a soberania do povo) que se torna ambíguo.

A justiça mundial deve, de qualquer maneira, mostrar uma grande serenidade diante de estratagemas abusivos -organizações não-governamentais fazem pressão permanente para instituir como novos carros-chefe da acusação internacional a pedofilia e o terrorismo. Deve também resistir à tentação clássica de ampliar espontaneamente seus poderes, como a procuradora Carla Del Ponte estendeu, por iniciativa própria, a competência do TPIY para o território de Kosovo, em 1999, sem esperar uma decisão do Conselho de Segurança.

Por fim, a instituição dos tribunais também não deveria ser uma “maneira de jogar um véu pudico sobre as impotências, as fraquezas ou incapacidades de prevenção e interrupção da comunidade internacional12”.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - Ler, de Catherine Samary, “Fiasco à La Haye”, e de Xavier Bougarel, “Du bon usage du Tribunal pénal international”, Le Monde diplomatique, abril de 2002.
2 - A definição desse crime deve ser decidida por uma convenção.
3 - O Conselho de Segurança pode suspender as pesquisadas conduzidas pelo procurador.
4 - Do mesmo modo, o recurso ao Tribunal pelo Conselho de Segurança lhe confere automaticamente competência.
5 - Cláusula compromissória ou convencional.
6 - A China e a Rússia nunca a subscreveram. A França retirou-se depois de ter sido objeto de processos em virtude dos testes nucleares no Pacífico.
7 - Ler, de Eric David, “La question de l’immunité des chefs d’Etat étrangers”, in SOS Attentats, Livre noir. Terrorisme et responsabilité pénale internationale, Paris, 2002.
8 - Essa modificação autoriza, sob condição, o governo a reenviar as denúncias que possam obstruir sua ação no plano internacional para o país de origem do responsável estrangeiro perseguido na Bélgica em virtude da lei de 1993. O texto prevê, além disso, um procedimento de reenvio ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e torna mais duras as condições em que os denunciantes sem vínculos com a Bélgica possam fazer denúncias.
9 - www.diplomatiejudiciaire.com...
10 - Ler, de Olivier Corten, “Une compétence universelle sans communauté internationale?”, Politique, XXX, n°23, fevereiro de 2002.
11 - www.revue-politique.com
12 - Citação de William Bourdon, secretário-geral da Federação Internacional das Ligas de Direitos Humanos (FIDH), sobre o TPIY, www.diplomatiejudiciaire.com




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