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GLOBALIZAÇÃO

A epidemia de gripe avícola e o agronegócio na Tailândia

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A recente transmissão para o ser humano da gripe do frango representa grande perigo: a ausência de vacina e de tratamento pode provocar, segundo a OMS, a morte de 2 à 7,4 milhões de pessoas. Na Tailândia, o surgimento da gripe avícola prejudicou a ambição do país de se tornar “a cozinha do mundo”, precipitando uma crise cujas vítimas já são os pequenos criadores

Isabelle Delforge - (01/07/2004)

Quarto exportador de aves do mundo, a Tailândia vende para o exterior até 90% de sua produção, ao 981 milhões de euros, principalmente para a União Européia e o Japão

A ambição da Tailândia de se tornar “a cozinha do mundo” foi severamente contrariada pela epidemia de gripe avícola que varreu a Ásia a partir de meados de dezembro de 2003. Desde o mês de janeiro de 2004, mais de 20.000 toneladas de frangos, recusados pelas autoridades japonesas, européias e sul-coreanas, voltaram para os seus produtores tailandeses. No total, em mais de oito paises asiáticos, mais de 100 milhões de aves foram mortas por esta epidemia sem precedente, a maior parte abatidas por medida profilática1. A organização mundial da saúde (OMS) disparou o sinal de alarme, quando constatou desde 1997 que este vírus (nomeado H5N1) não infetava mais apenas as espécies animais, mas que podia também ser transmitido para os humanos. As autoridades sanitárias temiam particularmente que o vírus fosse contagioso de uma pessoa para uma outra sem contato direto com uma ave infectada. O precedente do síndrome respiratório agudo severo (Sras) ainda estava presente em todas as memórias2: 34 pessoas, na Tailândia e no Vietnã, contraíram a gripe H5N1, das quais 23 morreram. Num relatório publicado em abril de 2004, a OMS mencionava “o risco (…) que as condições presentes em certas regiões da Ásia resultem numa pandemia da gripe. As pandemias, que reaparecem em intervalos imprevisíveis, provocam invariavelmente taxas elevadas de morbidade e de mortalidade, fortes perturbações sociais e importantes danos econômicos. Segundo certas estimativas prudentes baseadas em modelos matemáticos, a próxima pandemia poderia provocar a morte de 2 à 7,4 milhões de pessoas3”.

Crise nacional

O líder do mercado avícola também é o maior império comercial do país. O grupo Charoen Pokphand é um conglomerado multinacional presente em mais de 20 paises

A Tailândia sendo o país onde a epidemia resultou em mais vítimas humanas, a gripe avícola se transformou rapidamente numa crise nacional. De fato o frango representa um comércio particularmente lucrativo no reinado de Sião. Quarto exportador de aves do mundo, o país vende para o exterior até 90% de sua produção num valor de 981 milhões de euros, principalmente para a União Européia e o Japão4. A produção de alimentos para o gado, a criação, a transformação e a venda de frangos representam um setor industrial de uma importância tão grande que os danos da gripe avícola para a economia nacional são estimados em 2 bilhões de euros. Segundo Tripol Jawjit, deputado do partido democrata (oposição) na Câmara dos representantes, 670 000 famílias de criadores foram afetadas pela epidemia5. No entanto, se a epidemia estendeu suas asas bem além da criação de frangos e patos, é sobretudo porque o líder do mercado avícola também é o maior império comercial do país. O grupo Charoen Pokphand (CP), um conglomerado multinacional, principalmente voltado para os produtos agro-industrializados e presente em mais de 20 países, domina atividades tão diversas como a produção de sementes, as telecomunicações, a petroquímica ou o atacado.

Crise de confiança

Durante dois meses operárias tinham abatido e transformado aves doentes sem precaução sanitária especial

A introdução da criação intensiva de frangos nos anos 1970 tornou o grupo CP famoso na Tailândia. E mesmo que a criação intensiva de frangos represente hoje apenas 10% de seu faturamento, a gripe avícola abalou o grupo, provocando uma queda de suas ações de 12,5% no dia do anúncio oficial, levando a uma baixa brutal da bolsa de Bangkok. Além das conseqüências econômicas, a gripe do frango desencadeou uma profunda crise política. O Primeiro Ministro Thaksin Shinawatra, um dos mais ricos empresários, assumiu neste caso a defesa dos interesses dos exportadores de uma forma tão manifesta que os consumidores e os pequenos produtores se sentiram manipulados. Assim a população não desconfiava apenas de que tinha no prato, mas também da palavra de seus dirigentes. E a crise de confiança se exportou muito rapidamente nos principais parceiros comerciais do país. A resposta do governo em relação à epidemia aparenta-se a uma longa série de dissimulações, de mentiras, de incompetência, e de decisões extremamente contestáveis: o longo atraso antes de reconhecer a epidemia; as medidas seletivas tomadas para frear sua propagação; a formidável campanha de promoção nacional erguendo o consumo de frango à altura de ato patriótico; a promoção sem nuança da criação industrial em detrimento dos pequenos empreendimentos camponeses. Em 23 de janeiro de 2004, após ter negado que estava tentando abafar o caso, e sob pressão das organizações da sociedade civil e dos partidos de oposição, o governo admitiu a existência da epidemia. Várias fontes confirmam, no entanto, que a indústria e as autoridades sabiam que a gripe estava se alastrando há vários meses. Assim, em novembro de 2003, um veterinário da universidade Chulalongkorn avisara o ministério da agricultura que tinha identificado o vírus H5N1 nas carcaças dos frangos; nenhuma medida foi tomada6.

Trabalhadores em risco

Ao invés de pôr em quarentena as áreas onde havia presença do vírus, os funcionários do ministério distribuíam magras compensações aos avicultores em troca de silêncio

Desapontado, o Sr. Disathat Rojanalak, um agricultor orgânico de Nong Chok, perto de Bangkok, abre sua granja abandonada para a visitação. “Em dezembro, das minhas 800 galinhas de ovo, 650 morreram em alguns dias. Fiz analisar as carcaças pelo departamento de criação do ministério da agricultura. Uma funcionária declarou que os frangos morreram “sem nenhuma causa médica”. Como era possível acreditar que estes animais não estavam doentes? Entendi então que estavam escondendo a verdade de nós.” Centaco, um frigorífico de Bangkok. A empresa exporta frangos congelados, principalmente para o Japão. Sentadas diretamente no chão num dos pequenos quartos onde vivem, a dois passos da fábrica, uma quinzena de operárias sindicalizadas contam: “Antes do anúncio oficial da epidemia tivemos que fazer muito mais horas extra que de costume. Normalmente, abatemos cerca de 90 000 frangos por dia, relata uma delas. Mas a partir de novembro e até 23 de janeiro, transformamos até 130 000 frangos por dia”. Muitos animais chegavam doentes. “A ordem que nos foi dada foi de trata-los como de costume, mesmo que já fossem mortos por causa do vírus, explica uma trabalhadora. “Era a gente quem cortava os frangos. A gente via que estavam doentes. Seus órgãos estavam inchados. A gente ignorava que se tratava da gripe, mas desde outubro paramos de comer frangos.” Ao ficar sabendo, pela televisão, da natureza do vírus, ficaram assustadas. Durante dois meses, elas tinham abatido e transformado aves doentes sem precaução sanitária especial. “Nós então solicitamos à diretoria uma melhoria das medidas de segurança, diz uma das dirigentes sindicais. Pedimos roupas de proteção e conseguimos. Mas não é suficiente. Corremos mais riscos que os criadores, pois somos obrigadas a tocar os frangos durante o dia todo. Tocamos o sangue, tocamos as penas...”

Estratégia da dissimulação

A estratégia da dissimulação foi aplicada de baixo para cima da escala social: a reação do Sr. David Bryne, o comissário europeu para a saúde, foi uma das mais embaraçadoras para Bangkok. Apenas alguns dias antes de anunciar oficialmente a presença do vírus no território, o primeiro ministro lhe tinha pessoalmente garantido que o país fora poupado. A imprensa relata que o comissário se sentiu “desonrado”, ainda mais porque o governo declarou que havia mantido esta informação secreta por medo de provocar um movimento de pânico7.

O governo foi acusado de ter abafado o caso para proteger os interesses das grandes empresas, pois epidemia aumentou a cotação do frango congelado no mercado mundial

O diário econômico Manager acusou então o governo de ter abafado o caso para proteger os interesses das grandes empresas. Ao invés de pôr em quarentena as áreas onde a presença do vírus era detectada, os funcionários do ministério distribuíam magras compensações aos avicultores em troca de seu silêncio, e do sacrifício de seus animais8. A epidemia tinha propulsado a cotação do frango congelado nos mercados mundiais de 1 600 dólares por tonelada para 2 500 dólares. Segundo Manager, a indústria tailandesa tirou bom proveito destes meses gordos para inflar seus lucros9.

Apoio aos magnatas do frango

O apoio do governo aos magnatas do frango tomou um rumo espetacular quando o primeiro ministro em pessoa se lançou numa cruzada para convencer a população de comer frango. Ele multiplicou as aparições televisivas com uma coxa de frango entre os dentes, ou com água na boca frente a um banquete a base de frango. Painéis publicitários gigantes, assinados pelo governador de Bangkok, reforçavam a mensagem: “Se os tailandeses não comerem frango tailandês, como podemos esperar que outros além de nós compre?” O “festival do frango” organizado em 8 de fevereiro pelo governo foi o apogeu desta campanha insólita. Charoen Pokphand e toda a nata da indústria distribuíram milhares de refeições gratuitas; o maior comedor de frango foi coroado após uma competição apertada; estrelas do show-business do mundo político desfilaram, devorando ostensivamente frangos tailandeses. Após meses de rumores e de informações contraditórias, a população permaneceu cética e, durante longas semanas, vários restaurantes pararam de servir frango.

O anedótico patriotismo do frango

O apoio do governo aos magnatas do frango tomou um rumo espetacular quando o primeiro ministro em pessoa se lançou numa cruzada para convencer a população de comer frango

O patriotismo do frango promovido pelo governo carrega várias contradições. Os patriotas do garfo encorajaram os consumidores a comerem em restaurantes da franquia de fast-food... Kentucky Fried Chicken, onde o frango devia ser saudável pois bem cozido... e produzido pelo grupo CP. De forma menos anedótica, a atitude do poder demonstra claramente a prioridade dada à indústria de exportação. Em 2001, o país era o quinto maior exportador de produtos alimentícios do mundo, segundo uma classificação da Organização Mundial do comércio10. No entanto, a maior parte dos cidadãos do reinado não é beneficiada por este comércio lucrativo. A saúde dos consumidores e dos trabalhadores chega bem depois da prosperidade dos exportadores. A OMS foi levada a criticar a ausência de medidas de proteção para com os criadores e os trabalhadores da cadeia avícola11. As campanhas de informação sobre os riscos incorridos pela população e a forma de se proteger ficaram desproporcionadas em relação à campanha de retomada do consumo.

Reestruturação do setor

Os sucessos da Tailândia nos mercados mundiais não permitiu aos seus 20 milhões de pequenos produtores e trabalhadores do setor agro-alimentício sairem da pobreza

No médio prazo, esta crise precipita uma reestruturação do setor orientada a favor da criação industrial. Sob pretexto de segurança sanitária, as autoridades impõem de fato aos criadores a construção de galinheiros fechados. Incapazes de realizar os investimentos necessários, milhares de pequenos avicultores já tiveram que cessar suas operações, deixando o espaço para as grandes propriedades. Os sucessos da Tailândia nos mercados mundiais não permitiu aos seus 20 milhões de pequenos produtores e trabalhadores do setor agro-alimentício sairem da pobreza. De 1995 a 2000, enquanto o valor das exportações aumentava 52 %, a dívida média por família de agricultor aumentava igualmente 51 %12. Base operária deste sucesso, os pequenos camponeses produzem mais, porém vêem seus rendimentos diminuírem, enquanto o meio ambiente sofre consideravelmente com a exploração excessiva das terras. E a ambição da Tailândia de se tornar “a cozinha do mundo” coloca os interesses das multinacionais do agronegócio à frente dos da população.

(Trad.: David Catasiner)

1 - Gripe aviária, boletim 31, Organização Mundial da Saúde, Genebra, 2 de março de 2004.
2 - Ler Philippe Rivière, “Mobilização contra o SRAS, inação contra a aids”, Le Monde diplomatique, julho de 2003.
3 - OMS, “WHO consultation on priority public health interventions”, 27 de abril de 2004.
4 - Dados da Thai Broiler Association.
5 - The Bangkok Post, 6 de fevereiro de 2004.
6 - Idem, 30 de janeiro de 2004.
7 - Idem, 5 de fevereiro de 2004.
8 - Idem, 25 de março 2004.
9 - Manager, Bangkok, 2 de fevereiro de 2004.
10 - “Thai foods: to meet global demand”, National Food Institute, Bangkok, outubro de 2003.
11 - The Bangkok Post, 4 de fevereiro de 2004.
12 - Alternative Agriculture Network, Northern Farmers Federation, RRAFA, “Proposal to the Thai Governement for the position in the negociation on agriculture in Cancun – Mexico”, Bangkok, agosto 2003.




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