Jornalismo Crítico | Biblioteca e Edição Brasileira | Copyleft | Contato | Participe! |
Uma iniciativa


» No Capitalismo Indigno, raiz da extrema-direita

» Seres e lugares no cinema brasileiro

» Quem rotula quem, no mundo da alimentação-mercadoria?

» Orçamento-2025: onde está o “rombo”?

» MST, 40: muito além das ocupações

» IA: a urgência das Infraestruturas Públicas Digitais

» Como Florestan depenou o mito da democracia racial

» Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo

» A greve das universidades e os ecos de 2013

» MST, 40: o que mudou na luta pela terra

Rede Social


Edição francesa


» En 1924, jeux ouvriers contre jeux bourgeois

» Inégalités d'accès aux soins

» Réseau de coopératives

» Disparités indiennes

» Six décennies de densification du réseau autoroutier

» Inde et Chine, trajectoires divergentes

» « Dieu n'existe pas, mais il nous a donné cette terre »

» Les nouveaux chiens de guerre

» Dans les séries indiennes, une émancipation sous condition

» Au pays où le « gun » est roi


Edição em inglês


» German police suppresses Palestine Congress

» April: the longer view

» India: democracy in name only?

» In rural France, the far right is prospering

» China: the invention of the roadmap to global power

» It's so very nice to be nice

» The lucrative world of international arbitration

» USA: guns are a way of life

» Russia: the lessons of history

» Macron's poodles are the new dogs of war


Edição portuguesa


» Festa 25 anos + Conferência-Debate com Benoît Bréville

» A história como arma de guerra

» O choque da extrema-direita nos 50 anos da revolução

» 25 anos, 25 artistas

» Extrema-direita: o que tem o Algarve que é diferente dos outros?

» Vem Abril

» Abril x 50: uma democracia consensual?

» A Constituição de Abril de 1976: elo perdido da transição energética?

» aranzel das raspadinhas

» Zona de protecção, uma obsessão russa


DOSSIÊ ÁGUA

Os nomes da água

Imprimir
enviar por email

Ler Comentários
Compartilhe

Em latim, aqua não era a única palavra para esta substância. Havia também a palavra unda. Unda ameaçada, aqua privada de suas virtudes, o drama da água é universal: a guerra da água – milênios depois da guerra do fogo – se passa sobre o cenário da guerra contra a vida

Alan Rey - (01/03/2005)

Entre aqua e unda, duas grandes diferenças: a primeira palavra fazia da água um princípio, um ser ativo, um deus; a segunda via ali uma coisa, um meio percebido, provado, sensível

Por um fenômeno de condensação digno de um sonho freudiano, mas coletivo e secular, a palavra água reúne os principais aspectos desta substância vital e assume outros valores “líquidos”. Água, a coisa é conhecida, embora estranha, pronunciada em francês como uma vogal única – ô – é o resultado da palavra latina aqua, gasta pelas preguiçosas pronúncias galo-romanas, enquanto outras línguas romanas conservavam a consoante, até abrandando-a (o espanhol agua, o português água, ao lado do modelo antigo que o italiano guarda: aqua – sic). Os estágios intermediários para a palavra francesa, que deviam pronunciar-se awa, éwè, no norte da França, eram quase homônimos da palavra germânica de mesma origem ahwa (“rio”, na língua dos godos). Apenas as três letras vocálicas da palavra francesa lembram esta origem: e para o a inicial, a para o “we”, que não passa de um abrandamento do qw original e finalmente u para vogal final. Em um bonito e zombeteiro livro sobre a ortografia francesa, Jacques Laurent sugeria “depenar o pássaro” para a expressão francesa “plumer l’oiseau”, esta palavra em que nenhuma das letras e, a e u é pronunciada, já que é dita “uazô”; é a mesma coisa para esta eau reduzida a uma vogal sem suas três letras.

Água e unda

Se a poluição da água é um tema sentido tão violentamente, na sensibilidade da natureza, é porque a água (unda) deve ser também purificadora e lustral. Nenhum rito a dispensa

Em latim, aqua não era a única palavra para esta substância, um dos quatro elementos formadores do mundo: aqua, ignis, o fogo, aer e terra. Rica em derivados e compostos, aqua sofria a concorrência de unda que designava o elemento móvel, que o francês parou de chamar “onde1” e que correspondia, no plural aquae, a “flots” 2. Entre aqua e unda, duas grandes diferenças : a primeira palavra fazia da água um princípio, um ser ativo, um deus; a segunda via ali uma coisa, um meio percebido, provado, sensível, em suas diversas manifestações, do oceano ao regato, do lago ao conteúdo da jarra, da água que sustenta os navios àquela que faz crescer as plantas e mata a sede. Estas realidades vitais tinham nomes aparentados em todo o domínio indo-europeu; ao contrário, aqua, o princípio, pertencia, nas poucas línguas em questão ao “gênero animado” e tinha apenas “uma pequena extensão dialetal” (Ernest e Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine). Tratando-se de uma realidade geográfica e humana mundial como a água, não é indiferente que as palavras que a exprimem estejam espalhadas por uma zona linguística e cultural mais ou menos extensa. Neste terreno, unda, a água material, é uma das metamorfoses de um radical indo-europeu (w-t, w-d) que se encontra particularmente em hitita, em sânscrito (udn’ah), em grego (hudor, hudatos, donde nosso hidro-), em germânico (resultando em water e wasser), em eslavo (russo voda), este w-d era nasalisado nas línguas bálticas (vandi, vandeas) assim como em latim (unda).

As mitologias marinhas, lacustres, fluviais, pluviais, que surgem das religiões e poéticas têm sua “fonte” em uma luta multissecular pela sobrevivência

A sensibilidade cultural ao elemento é evidentemente função das representações pela linguagem – o vocabulário da água é de uma extrema riqueza –, sendo essas representações função da situação concreta das sociedades: as do deserto, do oásis, da nascente reagem de modo diferente daquelas dos climas temperados ou ainda das zonas da monção, das zonas das chuvas equatoriais, etc. Sartre, a respeito de Veneza, tira da água de laguna em contato com a cidade admirável a idéia de uma “eternidade irrequieta e que atrai para ela própria todos os contornos para negá-los”. Esta água é óptica e filosófica: é mais a aqua latina, princípio e divindade, que a unda que se esperaria.

Sobrevivência em jogo

Mas o que está em jogo em relação à água é antes de mais nada o mesmo que para a sobrevivência: a sobrevivência da própria Terra, em várias cosmogonias, sobrevivência da matéria, em certas teologias, como a do alemão Johann Albert Fabricius (Théologie de l’eau, 1741 em francês). Mas se a água pode alimentar o sonho (Bachelard, L’eau et les rêves), deve ter alimentado a vida, contribuindo também para lavar a sujeira. Se a poluição da água é um tema sentido tão violentamente, na sensibilidade da natureza, é porque a água (unda) deve ser também purificadora e lustral. Nenhum rito religioso a dispensa.

E eis que nos séculos XX e XXI este combate tende, destruindo as virtudes da água, apoderando-se de seus dons comprometidos, a arruinar a própria humanidade

A revolução científica dos séculos XVIII e XIX exprime-se amplamente através desta “substância-elemento”, sem que a descoberta de sua natureza material (H2O) destrua seu simbolismo. A geografia e a geologia devem recorrer a uma hidrologia geral, e em seguida, a política internacional, a geopolítica. As mitologias marinhas, lacustres, fluviais, pluviais, que surgem das religiões e poéticas têm sua “fonte” em uma luta multissecular pela sobrevivência. Repartir a água, combater a seca desértica e o fluxo destruidor (dilúvios, tufões), manter os povos entre a torrente – palavra paradoxal, que evoca o fogo devastador – e o deserto, foi a tarefa secular da humanidade em sua luta contra a “natureza madrasta”. E eis que nos terríveis séculos XX e XXI este combate tende, destruindo as virtudes da água, apoderando-se de seus dons comprometidos, poluindo os oceanos, as nuvens, as chuvas e veios de água (ciclo mortal, ciclo vital), a arruinar a própria humanidade, a aumentar as injustiças naturais, a assedentar e a envenenar ao mesmo tempo, carregando, de passagem, os símbolos e as imagens necessárias à esperança. Unda ameaçada, aqua privada de suas virtudes, o drama da água é universal: a guerra da água – milênios depois da guerra do fogo – se passa sobre o cenário da guerra contra a água, contra a vida.

(Trad.: Betty Almeida)

1 - O português ainda chama "onda" (N.T.).
2 - Em português torrentes, vagas (N.T.).




Fórum

Leia os comentários sobre este texto / Comente você também

BUSCA

» por tema
» por país
» por autor
» no diplô Brasil

BOLETIM

Clique aqui para receber as atualizações do site.

Leia mais sobre

» Água e Saneamento
» Direito à Água
» Direitos Humanos
» Privatizações
» Bens Comuns da Humanidade
» Mercantilização da Vida

Destaques

» O planeta reage aos desertos verdes
» Escola Livre de Comunicação Compartilhada
» Armas nucleares: da hipocrisia à alternativa
» Dossiê ACTA: para desvendar a ameaça ao conhecimento livre
» Do "Le Monde Diplomatique" a "Outras Palavras"
» Teoria Geral da Relatividade, 94 anos
» Para compreender a encruzilhada cubana
» Israel: por trás da radicalização, um país militarizado
» A “América profunda” está de volta
» Finanças: sem luz no fim do túnel
Mais textos