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O Holocausto e as raízes do mal

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“Quando certas pessoas nos censuram por criticar a política israelense, com medo de que façamos ressurgir o fantasma dos preconceitos raciais, eu lhes respondo que elas estão invertendo completamente o problema. É especialmente esse tabu, que pretende tornar Israel inquestionável, que pode atiçar o anti-semitismo”

Tony Judt - (24/06/2008)

Longe de refletir sobre o problema do mal, a maioria dos ocidentais desviou decididamente sua atenção desse tema nos anos que seguiram o término da Segunda Guerra Mundial. Isso nos parece difícil de compreender hoje, mas a verdade é que, durante bastante tempo, a shoah [1] – o genocídio dos judeus europeus – não foi uma questão fundamental na vida intelectual da Europa ou dos Estados-Unidos. De fato, a maioria das pessoas, intelectuais ou não, fez de tudo para ignorá-la.

Por quê? Na Europa Oriental, houve quatro motivos para isso.

Primeiramente, lá foram cometidos, durante a guerra, os piores crimes contra os judeus. E, apesar de os alemães serem os mandantes, não faltaram colaboradores de boa vontade nas nações ocupadas: poloneses, ucranianos, letões, croatas e outros. Em muitos países, foi grande a necessidade de esquecer o que acontecera, de baixar a cortina sobre os piores horrores.

Em segundo lugar, no Leste, muitos europeus não judeus também foram vítimas de atrocidades, nas mãos dos alemães, dos russos e de outros. Na maioria das vezes, ao rememorarem a guerra, não pensaram no sofrimento de seus vizinhos judeus, mas em sua própria dor e nas perdas que eles mesmos haviam sofrido.

Em terceiro lugar, a maior parte da Europa Central e Oriental passou para o controle soviético em 1948. Os soviéticos falavam oficialmente de “guerra antifascista” – ou, no caso da própria União Soviética, de "grande guerra patriótica". Para Moscou, Hitler era, antes de tudo, um fascista e nacionalista. Seu racismo importava muito menos. Os milhões de judeus, provenientes dos territórios soviéticos, que pereceram foram contabilizados nas perdas soviéticas. Sua identidade judaica foi minimizada, e até ignorada, nos livros de história e durante as comemorações oficiais.

Por último, após alguns anos de governo comunista, à memória da ocupação alemã sucedeu a da opressão soviética. O extermínio dos judeus foi relegado ao último plano [2].

Na Europa ocidental, apesar de as circunstâncias serem completamente diferentes, produziu-se um fenômeno de esquecimento semelhante. A ocupação – na França, na Bélgica, na Holanda, na Noruega e, depois de 1943, na Itália – representou uma humilhação. E os governos do pós-guerra preferiram esquecer a colaboração e outros ultrajes, e celebrar os movimentos de resistência, os levantamentos nacionais, a libertação, os heróis e os mártires. Da mesma maneira, na Alemanha do pós-guerra, o humor nacional foi primeiro de condolência pelos sofrimentos dos próprios alemães. Com o advento da Guerra fria e a troca de inimigos, tornou-se inoportuno insistir nos crimes passados cometidos pelos aliados atuais.

É por isso que, para tomar um exemplo famoso, o livro de memórias Se questo è un uomo (É isto um homem?), oferecido por Primo Levi ao grande editor italiano Einaudi em 1946, foi logo rejeitado [3]. Na época, e nos anos seguintes, era Bergen-Belsen e Dachau, e não Auschwitz, que encarnavam o horror do nazismo: os deportados políticos e não raciais. O livro de Primo Levi acabou sendo publicado, porém com 2.500 exemplares apenas, e por uma pequena editora local. Os compradores foram raros. Guardados em um armazém de Florença, os exemplares que sobraram foram destruídos pelas grandes inundações de 1966.

Tudo começou a mudar após a década de 1960. Por várias razões: o tempo que havia passado, a curiosidade manifestada pela nova geração, o relaxamento das tensões internacionais. Nos anos 1980, a história da destruição dos judeus da Europa, evocada nos livros, no cinema e na televisão, tornou-se conhecida por um público cada vez maior. Desde os anos 1990 e o fim da divisão da Europa, os arrependimentos oficiais, as comemorações nacionais, os memoriais e os museus tornaram-se comuns.

A shoah é hoje uma referência universal. O estudo da história da “solução final”, do nazismo ou da Segunda Guerra Mundial tornou-se obrigatório nos currículos escolares em todos os lugares. Há escolas, nos Estados-Unidos, e até no Reino-Unido, em que esse é o único aspecto da história européia moderna ensinado às crianças. Inúmeros testemunhos, relatos e estudos sobre o extermínio dos judeus da Europa durante a guerra existem atualmente: monografias, pesquisas sociológicas e psicológicas, ensaios filosóficos, entrevistas, memórias, romances, filmes e muito mais.

Então, está tudo bem agora? Agora que examinamos o passado em toda a sua ignomínia, que o chamamos pelo nome e que juramos que nunca mais deverá se repetir? Isso não é tão certo assim. A preocupação de nossa época pela shoah, pelo que os estudantes chamam hoje de “holocausto”, apresenta cinco problemas.

O primeiro é o dilema das memórias incompatíveis. O olhar da Europa Ocidental sobre a “solução final” é hoje universal. Contudo, com o desaparecimento da União Soviética e a subseqüente liberdade de estudar e debater os crimes e os revezes do comunismo, foi dada uma atenção maior aos sofrimentos da metade oriental da Europa, nas mãos dos alemães bem como dos soviéticos. Neste contexto, a insistência da Europa Ocidental e dos Estados-Unidos em relação às vítimas judias e a Auschwitz provoca, às vezes, uma certa irritação. Na Polônia e na Romênia, por exemplo, perguntam – e são pessoas instruídas e cosmopolitas – por que os intelectuais ocidentais são tão sensíveis ao extermio dos judeus. O que dizer sobre as milhões de vitimas não judias do nazismo e do stalinismo? Por que a shoah é tão excepcional?

Um segundo problema se refere à exatidão histórica e aos riscos de compensação. Durante longos anos, os europeus ocidentais preferiram não pensar nos sofrimentos dos judeus durante a guerra. Hoje, somos encorajados a pensar nisso o tempo todo. É assim que deve ser em termos morais: Auschwitz é a questão ética central da Segunda Guerra Mundial. Contudo, isso induz os historiadores ao erro. Pois a triste verdade é que, durante a guerra mesmo, vários foram aqueles que não tinham conhecimento do destino dos judeus e que, se o tivessem, não teriam se importado muito com isso. Houve apenas dois grupos para os quais a Segunda Guerra Mundial foi, antes de tudo, um projeto que visava destruir os judeus: os nazistas e os próprios judeus. Para praticamente todos os outros, a guerra teve sentidos completamente diferentes: cada qual tinha seu próprio problema.

É difícil para nós aceitar o fato que a shoah tenha um papel mais importante em nossas vidas hoje do que teve durante a guerra nas nações ocupadas. Porém, se quisermos compreender o verdadeiro sentido do mal, precisamos lembrar que o que confere à destruição dos judeus todo o seu horror não é o fato de ter tido tanto importância, mas o de ter tido tão pouca.

O terceiro problema diz respeito ao conceito mesmo de “mal”. Desde muito tempo, tal idéia gera desconforto na sociedade secular moderna. Preferimos as definições mais racionais e jurídicas do bom e do ruim, do justo e do injusto, da conduta correta e do crime. Porém, nestes últimos anos, o termo se reinseriu lentamente no discurso moral e até político. E agora, que o conceito de “mal” se reintegrou à nossa linguagem pública, não sabemos o que fazer com ele. Nossas idéias ficaram confusas.

Por um lado, o extermínio dos judeus pelos nazistas é apresentado como um crime ímpar, um mal que não foi igualado, nem antes nem depois, um exemplo e uma advertência: “Nie wieder!” (“Isso nunca mais!”). Mas, por outro lado, alegamos a presença desse mesmo mal (“único”) em vários casos diferentes e longe de ser únicos. Nos últimos anos, políticos, jornalistas e historiadores usaram o termo “mal” para designar crimes em massa e genocídios cometidos em todas as partes do mundo: do Camboja a Ruanda, da Chechênia ao Sudão. Evoca-se muitas vezes Hitler, ele mesmo, para designar a natureza e as intenções de ditadores modernos que praticam o “mal”: dizem que há “hitleres” em todos os lugares.

Até porque, se Hitler, Auschwitz e o genocídio dos judeus encarnam um mal único, por que nos advertem constantemente do perigo de que tais crimes possam se repetir em qualquer lugar, ou que estejam prestes a se repetir? Toda vez que grafites anti-semitas maculam as paredes de uma sinagoga na Europa, previnem-nos que esse “mal único” está novamente entre nós, que estamos novamente em 1938. Perdemos a capacidade de diferenciar os pecados e as inépcias normais da espécie humana – imbecilidade, oportunismo, demagogia, preconceitos e fanatismo – do mal autêntico. Atualmente falamos o tempo todo do “mal”. Mas, com isso, nós lhe diluímos o sentido.

A quarta preocupação é o risco que corremos ao investir toda nossa energia emocional e moral em um único problema, por mais grave que seja. O custo desse tipo de visão, que parece enxergar o mundo através de um túnel, manifesta-se tragicamente na obsessão da Casa Branca pelos males do terrorismo, em sua “guerra global contra o terror”. A questão não é saber se o terrorismo existe: é óbvio que existe. Também não é saber se precisamos combater o terrorismo e os terroristas: é óbvio que precisamos combatê-los. A questão é saber que outros males iremos negligenciar, ou criar, concentrando-nos exclusivamente em um só inimigo e nos servindo dele para justificar a centena de crimes menores que cometemos nós mesmos.

Esse argumento também vale em relação a nossa fascinação moderna para com o problema do anti-semitismo e nossa insistência sobre sua importância única. A exemplo do terrorismo, o anti-semitismo é um problema antigo. O anti-semitismo é como o terrorismo: a menor manifestação nos relembra as conseqüências que teve no passado o fato de não levarmos a ameaça suficientemente a sério. Contudo, o anti-semitismo, como o terrorismo, não é o único mal no mundo, e não deve servir como desculpa para ignorarmos outros crimes e outros sofrimentos. Abstrair o terrorismo ou o anti-semitismo de seu contexto, colocá-los sobre um pedestal como representando a maior ameaça contra a civilização ocidental, ou a democracia, ou “nosso modo de vida”, e fazer de seus autores o alvo de uma guerra indefinida, nos leva a correr um risco: o de ignorar os vários outros desafios da nossa época.

Na era da Guerra Fria, o totalitarismo, como o terrorismo e o anti-semitismo hoje em dia, ameaçava tornar-se uma preocupação obsessiva dos intelectuais e políticos do Ocidente, excluindo todo o resto. E, contra isso, Hannah Arendt, perfeitamente consciente da ameaça que esse fenômeno representava para as sociedades abertas, lançou uma advertência que permanece atual. O maior perigo que haveria em considerar o totalitarismo a maldição do século seria fazer dele uma obsessão, a ponto de não se ver mais os diversos males, pequenos e não tão pequenos, de que o inferno está cheio [4].

Último ponto preocupante: as relações entre a memória da shoah e o Estado de Israel. Desde seu nascimento, em 1948, o Estado de Israel mantém relações complexas com a shoah. Por um lado, o quase extermínio dos judeus europeus justificava a causa do sionismo. Os judeus não podiam prosperar, nem sequer sobreviver, em territórios não judeus; sua integração e assimilação em nações e culturas européias eram uma trágica ilusão; de onde a necessidade de um Estado que fosse deles. Por outro lado, a idéia difundida entre os israelenses de que os judeus da Europa haviam contribuído para sua própria perda, que foram, como já disse, “para o abatedouro como carneiros”, significava que a identidade primeira de Israel consistia em rejeitar o passado judeu e em ver na catástrofe que havia afligido os judeus a prova de uma fraqueza: uma fraqueza que estava no destino de Israel superar, gerando um novo tipo de judeu [5]. Porém, nos últimos anos, a relação entre Israel e o “holocausto” mudou. Hoje, enquanto Israel suscita críticas internacionais em razão dos maus tratos que inflige aos palestinos e da ocupação dos territórios conquistados em 1967, seus defensores preferem evidenciar a memória da shoah. Se criticarem demais Israel, avisam, vocês vão acordar os demônios do anti-semitismo. De fato, insinuam, críticas muito ásperas a Israel não apenas acordam o anti-semitismo. Elas emanam do anti-semitismo. E, com o anti-semitismo, o caminho está aberto para 1938, para a Kristallnacht (Noite de cristal), e, daí, para Treblinka e Auschwitz. Eu entendo as emoções que motivam tais afirmações. Porém, elas são extraordinariamente perigosas em si. Quando certas pessoas nos censuram por criticar Israel demais, com medo de que façamos ressurgir o fantasma dos preconceitos raciais, eu lhes respondo que elas estão invertendo completamente o problema. É especialmente esse tabu que pode atiçar o anti-semitismo. Já faz muitos anos que dou conferências em escolas, nos Estados Unidos e em outros países, sobre a história da Europa do pós-guerra e a memória da shoah. Também ensino essas matérias na universidade. E posso contar o que constatei. Os estudantes não precisam que lhes lembrem o genocídio dos judeus, as conseqüências históricas do anti-semitismo ou o problema do mal. Conhecem bem o assunto – como seus pais nunca o conheceram. E assim deve ser. Contudo, ultimamente, fiquei espantado com a recorrência de perguntas novas: “Por que focalizamos tanto o holocausto?”, “Por que, em alguns países, é proibido negar a existência da shoah, mas não a de outros genocídios?”, “Não estamos exagerando a ameaça do anti-semitismo?”, “O genocídio nazista não serve de desculpa para Israel?”. Não me lembro de ter ouvido essas perguntas no passado.

Temo que tenham acontecido duas coisas. Ao salientar o caráter histórico único do “holocausto”, mencionando-o constantemente em relação a problemas atuais, semeamos a confusão na cabeça dos jovens. E, ao protestarmos contra o “anti-semitismo” toda vez que alguém critica Israel ou defende os palestinos, fabricamos cínicos. Pois a verdade é que, hoje, o Estado de Israel não está ameaçado em sua existência. E que os judeus do Ocidente não estão de maneira nenhuma confrontados a preconceitos e ameaças comparáveis aos do passado – ou até mesmo àqueles dos quais são atualmente vítimas outras minorias.

Façamos a seguinte pergunta: como nos sentiríamos hoje nos Estados Unidos, sendo muçulmanos ou imigrantes ilegais? Por acaso, nos sentiríamos bem-vindos, acolhidos, seguros? E como paquistaneses no Reino-Unido, marroquinos na Holanda, árabes na França, negros na Suíça, romenos na Itália, “estrangeiros” na Dinamarca, ciganos em qualquer parte da Europa? Será que não nos sentiríamos mais aceitos, integrados e seguros como judeus? Acho que todos conhecem a resposta para essa pergunta. Seja na França ou na Holanda, nos Estados Unidos ou na Alemanha, os judeus estão largamente representados no mundo dos negócios, na mídia e nas artes. Em nenhum desses países são estigmatizados, ameaçados ou excluídos.

A ameaça com a qual os judeus – e cada um de nós – deveríamos nos preocupar vem de outra parte. Ancoramos tão solidamente a memória do genocídio à defesa de um só país, Israel, que corremos o risco de regionalizar seu significado moral. O problema do mal, do mal totalitário, do mal genocida, é um problema universal. Porém, se for manipulado em proveito de um país, o que vai acontecer, e o que já está acontecendo, é que aqueles que mantêm alguma distância da memória do crime perpetrado na Europa – porque não são europeus ou porque são jovens demais para se lembrarem de seu significado – não compreenderão em que essa memória lhes diz respeito e não nos escutarão mais quando tentarmos lhes explicar.

As admoestações morais vindas de Auschwitz, que pairam sobre a tela da memória dos europeus, são invisíveis aos olhos dos asiáticos ou dos africanos. E, mais do que tudo, o que parece óbvio para as pessoas da geração que viveu a guerra tem cada vez menos sentido para seus filhos e netos.

Todos os nossos museus, memoriais e excursões escolares atuais talvez não sejam o sinal de que estejamos prontos para nos lembrar, mas o sinal de que pensamos ter feito penitência e podemos agora começar a esquecer, deixando que as estelas se lembrem por nós. Eu não sei: na última vez em que visitei o Memorial do Holocausto em Berlim, os jovens que lá estavam fazendo uma visita escolar, entediados, brincavam de esconde-esconde entre as estelas. O que eu sei em compensação é que, se a história deve fazer seu trabalho, que é de preservar para sempre a prova dos crimes passados e todo o resto, é melhor deixá-la em paz. Quando vasculhamos o passado buscando tirar proveito político, aproveitando aquilo que pode nos servir e encarregando a história de dar lições de moral oportunistas, obtemos ao mesmo tempo uma moralidade ruim e uma história ruim.

Há a banalidade tristemente famosa e perturbadora da qual falava Hannah Arendt, o mal próximo, cotidiano, normal do ser humano. Mas existe outra banalidade: a do uso abusivo. O efeito monótono que, de tanto vermos, falarmos, pensarmos a mesma coisa, faz com que adormeçamos e nos dessensibilizemos em relação ao mal evocado. É com essa banalidade – ou com essa “banalização” – que estamos hoje confrontados.

Passado o ano de 1945, a geração de nossos pais afastou o problema do mal, porque, para ela, seu sentido pesava demais. O perigo, à espreita da geração que virá depois de nós, é de afastá-lo porque agora ele tem muito pouco sentido.



[1] A palavra hebraica shoah significa “destruição”, “ruína”, “calamidade” (conforme Isaías 10:30). Tem sido utilizada, principalmente em Israel, para designar o extermínio dos judeus durante o período nazista. É, muitas vezes, traduzida como “holocausto”. Mas tal tradução resulta imprópria, pois “holocausto”, termo de origem grega, designa o sacrifício feito aos deuses. Neste, a vítima era abatida e depois queimada. O sangue e as vísceras, impregnados de “força vital”, eram oferecidos à divindade. E a fumaça, que subia da pira sacrificial, estabelecia a conexão entre a Terra e o Céu (nota da edição brasileira).

[2] O anti-semitismo, que possui raízes profundas no Leste Europeu, acentuou-se, na União Soviética e em seus países satélites, no período de 1948 a 1953. Neste qüinqüênio, o último de sua vida, apesar de ter apoiado as forças judias na guerra de 1948 contra os árabes, que se seguiu à criação do Estado de Israel, Stálin iniciou uma violenta repressão aos judeus da URSS. A perseguição culminou em 3 de janeiro de 1953, no chamado “desmascaramento do complô dos médicos”, quando nove catedráticos de medicina, encarregados da saúde da alta cúpula soviética, foram acusados de pertencer a uma organização judaica internacional e de trabalhar para a espionagem americana e britânica com o objetivo de assassinar importantes líderes do país. O processo instaurado pelo regime, que ameaçava se transformar em uma grande cruzada anti-semita, foi abortado pela morte de Stálin, em 5 de março de 1953 (nota da edição brasileira).

[3] Nesse livro, que o tornaria mundialmente famoso, o escritor italiano Primo Levi (1919-1987) descreve suas experiências no campo de concentração de Auschwitz, onde foi prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial (nota da edição brasileira).

[4] Hanna Arendt, Essays in understanding, 1930-1954: formation, exile, and totalitarianism, Nova York, Harcourt Brace, 1994.

[5] Ver Idith Zertal, Israel’s holocaust and the politics of nationhood, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, especialmente o capítulo 1, “The sacrificed and the sanctified”.


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