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ESTADOS UNIDOS

A nova doutrina militar americana

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Em seu discurso em 31 de janeiro, o secretário norte-americano da Defesa, Donald Rumsfeld, traçou a essência da nova era da hegemonia militar dos Estados Unidos: colocou no mesmo campo inimigo organizações terroristas e países que supostamente as apóiam. E, justificou, assim, a explosão do orçamento militar

Paul-Marie de La Gorce - (01/03/2002)

Além do poder de deter qualquer agressão, os EUA vislumbram a possibilidade de ocupar a capital de um país inimigo para nela instalar um novo regime

Diante dos oficiais estagiários da Universidade da Defesa Nacional, em 31 de janeiro de 2002, em Washington, Donald Rumsfeld, secretário norte-americano da Defesa, expôs a nova doutrina militar dos Estados Unidos. “Devemos agir agora”, declarou, “para termos um poder de dissuasão em quatro cenários importantes”, acrescentando que atualmente é preciso estar em condições “de vencer dois agressores simultaneamente e ainda ter a possibilidade de conduzir uma ampla contra-ofensiva e ocupar a capital de um inimigo para nela instalar um novo regime1”. Dessa forma, é dada uma guinada importante à doutrina em vigor até o momento presente.

Anteriormente, a evolução dos objetivos fundamentais de defesa passou por três etapas essenciais. Antes do início da década de 70, a política norte-americana de defesa tinha por objetivo preparar-se para “duas guerras e meia”. Dentro do espírito da Guerra Fria, em que os países comunistas pareciam constituir um único bloco, era preciso prever uma eventual guerra contra a União Soviética, uma outra da mesma natureza contra a China e, ao mesmo tempo, uma outra, em escala regional, contra países inimigos sem poderio militar comparável ao dos dois grandes, tal como a guerra da Coréia, a do Vietnã ou as expedições militares realizadas no Líbano, na Guatemala e na República Dominicana.

Novos cenários de conflito

As mudanças anunciadas por Donald Rumsfeld não significam uma doutrina do emprego da força: esta resulta da chamada “revolução nos assuntos militares”

O divórcio entre a União Soviética e a China levou o presidente Richard Nixon a adotar o conceito de “uma guerra e meia”, que previa um conflito maior com a União Soviética, ou com a China, além de um conflito restrito.

Finalmente, logo após o fim da Guerra Fria, o governo Bush publicou, em 1991, um documento intitulado Base Force Review. Essa nova doutrina previa, a partir daquele momento, “dois conflitos regionais importantes” (Major Regional Conflicts). O governo Clinton confirmou essas orientações em 1993, na Bottom-Up-Review, e em 1997, na Quadriennal Defense Review, nas quais esses conflitos foram rebatizados com o nome de “guerras principais do cenário” (Major Theater Wars)2

Em seu discurso em 31 de janeiro, Rumsfeld não se limitou a ampliar as perspectivas de conflito de dois para quatro “cenários principais”; tentou definir com maior precisão as ameaças que os Estados Unidos devem enfrentar. Colocou no mesmo campo inimigo as organizações terroristas com “ambições mundiais” e os países que as apóiam, principalmente os que poderiam ajudá-las com as armas de destruição maciça (nucleares, biológicas e químicas) com as quais estariam se equipando. A ameaça já não se define somente por sua origem, mas também por sua natureza. “Devemos nos preparar para novas formas de terrorismo”, declarou Rumsfeld, “e também para ataques contra o potencial espacial norte-americano e ciber-agressões contra nossos sistemas de comunicação, sem esquecer os mísseis de cruzeiro, os mísseis balísticos, o armamento químico e as armas biológicas”.

A máquina de guerra reforçada

As mudanças anunciadas por Donald Rumsfeld não significam uma doutrina do emprego da força: esta resulta da chamada “revolução nos assuntos militares”

E para justificar, antecipadamente, o considerável aumento do orçamento militar americano, Rumsfeld enumerou os seis principais objetivos da nova política de defesa: proteção do território nacional e das bases norte-americanas no exterior; projeção de forças para os palcos de operação distantes; destruição dos santuários do inimigo; segurança dos sistemas de informação e comunicação; desenvolvimento do uso de técnicas necessárias às operações conjuntas em terra; e proteção do acesso ao espaço e do potencial espacial dos Estados Unidos.

Contudo, as mudanças anunciadas pelo secretário da Defesa não significam uma doutrina do emprego da força. Elas resultam do que se chamou de “revolução nos assuntos militares”, ligada às novas tecnologias referentes à precisão dos tiros de longo alcance, à informação permanente sobre as forças presentes e alvos eventuais. Chegou-se, dessa forma, ao conceito central de “controle estratégico”, que consiste em estar sempre em condição de identificar a situação do adversário, de reduzir seu potencial pela destruição planejada de sua capacidade militar, industrial e política, de arrasá-lo, se necessário, e conseguir assim sua retirada ou sua capitulação. Isso não implica forçosamente a ocupação do território em questão, ou do inimigo, pelo menos na primeira fase do conflito. A ação terrestre deve se restringir apenas aos objetivos determinados pelo poder político, ou seja, pelo governo norte-americano.

Controle estratégico e tiros eficientes

O projeto de defesa antimísseis resulta de uma análise que se baseia na superioridade absoluta dos Estados Unidos em todos os campos da defesa

Os estrategistas sempre afirmaram que a doutrina de “controle estratégico” foi concebida para responder a qualquer tipo de conflito. Ela se aplica em função do tipo de adversário, de sua população, do seu potencial industrial, de sua infra-estrutura, da importância de suas aglomerações urbanas, mas, principalmente, de seu regime político e do que é preciso fazer para derrubá-lo, ou neutralizá-lo. A doutrina dá lugar, portanto, a um maior empirismo na sua aplicação. Isso, se os especialistas norte-americanos (tanto os do governo quanto os dos think tanks por ele contratados) estudaram cuidadosamente a aplicação dessa doutrina durante as guerras do Golfo, da Bósnia, e depois, do Kosovo.

No Iraque, a ofensiva aérea norte-americana durou 43 dias, seguida por apenas quatro dias de operações terrestres. Na Bósnia, acertou 300 alvos, pagando o preço de dois aviões perdidos e de dois mortos, ficando os aliados encarregados das operações terrestres. No Kosovo, durou 78 dias; e só foi eficiente no que se refere aos objetivos civis na Sérvia, em Montenegro e no território do Kosovo, sem mortes do lado norte-americano, com o Pentágono reconhecendo apenas a perda de um avião F117 e de cerca de 15 aviões de reconhecimento não-pilotados. Os especialistas admitem o fracasso, quase total, dos ataques contra o exército iugoslavo, declarando que apenas 12 ou 13 tanques foram destruídos, exatamente o que o comando iugoslavo tinha declarado e bastante aquém da proeza anunciada pelos serviços de informação e de propaganda da Otan durante a guerra. Ainda assim, os especialistas acham que entre uma experiência e outra a eficiência dos tiros não parou de crescer.

Massacre no Afeganistão

Na guerra do Afeganistão, a mesma doutrina estratégica foi aplicada, com adaptações – e resultou em poucas baixas do lado americano e em massacre dos afegãos

Quanto à guerra do Afeganistão, a mesma doutrina foi aplicada, mas adaptada à natureza particular do terreno e à disposição das forças presentes. Em uma primeira fase, enquanto a prioridade era a formação de um poder político para substituir o taliban, os ataques norte-americanos foram dirigidos contra a capacidade militar do adversário – campos de pouso, tanques, concentração de materiais, depósitos de munição – com o emprego adicional de mísseis de cruzeiro, lançados com grande precisão, a partir de aviões ou de navios de guerra.

Em uma segunda fase, quando o objetivo passou a ser a ocupação do território pelas forças da Aliança do Norte, e depois pelas milícias pashtu recrutadas no local, recorreram aos bombardeamentos maciços. Essa “cobertura” do terreno permitiu às forças terrestres apoiadas ou recrutadas pelos Estados Unidos avançar com a ajuda de algumas unidades especiais norte-americanas, sem ter de enfrentar um combate mais intenso. O mesmo ocorreu quando entraram em Mazar-el-Sharif e em Cabul, o que não impediu autênticos massacres. Em Kandahar, onde os taliban tinham se refugiado e dispersado, o procedimento consistiu principalmente em destruir a cidade. O número de vítimas dos bombardeios nunca foi revelado.

O projeto de defesa antimísseis

Sob o choque dos atentados, alguns orçamentos explodiram, como o destinado à luta contra o bioterrorismo

No fim, tanto em relação ao Afeganistão quanto ao Iraque, à Bósnia e ao Kosovo, os dirigentes norte-americanos têm razão em pensar que seu conceito de “controle estratégico” foi bem aplicado, com variantes inevitáveis, mas com bastante eficácia, visto que atingiram seus objetivos políticos com perdas desprezíveis para eles.

Os defensores e os artífices da doutrina militar norte-americana expõem, sem embaraço nem complexo, o vínculo entre o conceito de “controle estratégico” e os atuais projetos de defesa antimísseis. Evocam naturalmente a ameaça que poderiam representar certos países com poderio militar limitado, mas capazes de atingir o solo norte-americano com mísseis de média e longa distância3. Afirmam que o potencial aeroespacial norte-americano garante a invulnerabilidade do território dos Estados Unidos, e que os meios de defesa antimísseis localizados no exterior ou no mar não passam de um apoio. A correlação entre o conceito de “controle estratégico” e o projeto de defesa antimísseis, por exemplo, revela-se mais determinante do que as explicações que são dadas oficialmente sobre o assunto. Esse projeto, batizado de Missile Defense System (MDS), provocou muitas objeções. Mas isso pouco adiantou, diante da determinação norte-americana. Nem quando o governo de Bush anunciou que rompia o tratado ABM de 1972 e, menos ainda, quando, sem respeitar o prazo de seis meses previsto para casos como esse, realizou, com êxito, a experiência do lançamento de um míssil antimíssil de um navio de superfície.

A China na mira

O projeto MDS resulta de uma análise estratégica que se baseia na superioridade absoluta dos Estados Unidos em todos os campos da defesa. Os estrategistas – membros da Comissão designada para estudá-lo sob a presidência de Donald Rumsfeld e do secretário de Estado Colin Powell – deduziram que convinha não mais se pautarem pelos antigos conceitos de dissuasão mútua e paridade nuclear, determinantes durante a Guerra Fria. Segundo eles, é preciso, ao contrário, ir mais longe na redução dos arsenais nucleares, com a Rússia e os Estados Unidos conservando seus meios de dissuasão, mas sem interesse ou intenção de atacarem. O corolário é que tanto o território norte-americano quanto as zonas julgadas de interesse vital, situadas em territórios aliados, e as bases aéreas navais norte-americanas localizadas no exterior devem ser defendidos por um sistema antimíssil.

Defendidos de quem? Para alguns, o inimigo potencial, cuja capacidade ofensiva poderia ser destruída por uma barragem antimíssil, poderia ser um dos Estados-delinqüentes (rogue states) denunciados pela diplomacia americana. Para outros, trata-se evidentemente da China. Hoje essa discussão está superada. O inimigo pode ser um desses Estados que já não são chamados “delinqüentes” mas “referentes” a projetos de desenvolvimento de armas de destruição maciça; o que, também neste caso, se aplicaria à China. Esta é apontada claramente como adversário eventual no documento intitulado Joint Vision 2020, em que é qualificada como peer competitor, isto é, rival do mesmo nível.

O “eixo do mal”

É evidente que Taiwan seria a primeira zona externa protegida pelo Missile Defense System, para impedir que a China a controlasse. O mesmo ocorre com as bases aéreas e aeroterrestres norte-americanas estabelecidas na Quirguízia e no Uzbequistão, de maneira “duradoura”, segundo Rumsfeld. Para continuar a ter credibilidade, a China será obrigada a desenvolver seus mísseis, em volume e desempenho, bem além do nível atual: segundo informações idôneas, de origem norte-americana, uma centena de mísseis móveis terra-terra, com ogivas nucleares e, portanto, invulneráveis a ataques-surpresa, poderiam, em menos de 12 anos, atingir o território norte-americano4.

Mas, o “inimigo” poderia também estar entre os países do “eixo do mal”, segundo definição do presidente George W. Bush em seu discurso de 29 de janeiro de 2002. Ou seja, a Coréia do Norte, o Irã e o Iraque. Ora, aparentemente, esses três países não têm ligação alguma com a organização terrorista responsável pelos atentados de 11 de setembro. E também não estão equipados com armas de destruição maciça – as do Iraque, por exemplo, foram desmanteladas.

Os acordos com a Coréia do Norte

Com relação a esses três objetivos, os inspiradores e artífices da nova doutrina estratégica retomam o conceito do emprego de forças convencionais. Para cada um deles, são estudados diferentes cenários. No caso do Iraque, já se sabe que uma ofensiva aérea cuidadosamente planejada não poderia ser deflagrada sem que antes fosse assegurado o apoio terrestre, recrutado no próprio local, visando uma operação conjunta, que só teria fim com a derrubada do regime do presidente Saddam Hussein.

As dimensões geográfica, demográfica, econômica e militar do Irã tornam improvável deflagrar uma guerra convencional contra o país: os cenários avaliados vão do bloqueio parcial ao país – o que implicaria a formação, difícil de ser obtida, de uma coalizão disciplinada – aos ataques precisos contra instalações industriais e militares onde seriam produzidas armas de destruição maciça. Mas nenhum desses cenários evita um encadeamento de reações e de contramedidas, impossíveis de serem controladas.

A proximidade com a China limita, sem excluir, as hipóteses de operações aéreas ou aeroterrestres contra a Coréia do Norte, e também são levados em conta os acordos negociados com o governo norte-coreano para limitar a produção, o desenvolvimento e a exportação de mísseis, como já fora feito antes com relação à fabricação eventual de armas nucleares.

Escalada do orçamento militar

O novo orçamento norte-americano para a defesa já basta para mostrar que o governo está decidido a enfrentar, nesses três casos, todo um espectro de hipóteses de conflitos, e que não quer gerar um impasse em qualquer outro cenário de crise. É claro que não é o primeiro governo a proporcionar um aumento geral das despesas militares: nos últimos anos do governo Clinton, elas passaram de 259 bilhões de dólares, em 1998, para 279 bilhões, em 1999, e para 290 bilhões, em 2000, atingindo 301 bilhões de dólares no ano fiscal de 2000-20015. Mas ocorreu uma aceleração: de 328 bilhões de dólares, para 2001-2002, as despesas passaram para 379 bilhões no ano seguinte. E poderão atingir 450 bilhões em 2007. Sob o choque dos atentados, alguns orçamentos explodiram, como o destinado à luta contra o bioterrorismo, que passou de 1,4 bilhão de dólares para 3,7 bilhões6.

A lição é clara. Como o governo norte-americano anunciou que, para atingir seus objetivos, o recurso à força era necessário e legítimo, ele usa de todos os meios de força para fazê-lo. (Trad.: Marinilzes Mello)

1 Agência France Presse, 31 de janeiro de 2002. 2 Sobre a evolução desses conceitos, ler, por exemplo, de Paul-Marie de La Gorce, “Comment l’alliance atlantique tente d’adapter son système de sécurité”; de Michael T. Klare, “La nouvelle stratégie militaire des Etats-Unis”; de Paul-Marie de La Gorce, “Washington relance la course aux armements”, no Monde diplomatique, respectivamente de dezembro de 1993, novembro de 1997 e dezembro de 1999. 3 Ler, do almirante Marcel Duval, “Le projet de bouclier anti-missiles américain”, in Geopolitique nº 7, janeiro-março de 2002, Paris. 4 Intelligence et sécurité, Paris, janeiro de 2002. 5 Office of Management and Budget, Congressional Budget Office. 6 Ler, de Judith Miller, “Bush to Request big spending push on bio-terrorism”, New York Times, 4 de fevereiro de 2002.




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