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Um rebelde na Presidência

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As palavras de ordem da campanha de Lucio Gutiérrez romperam com a vulgata neoliberal e seu movimento político - o Partido Sociedade Patriótica de 21 de janeiro (PSP) - reatou a aliança com o movimento indígena, bastante atuante

Marc Saint-Upéry - (01/01/2003)

ntem

A gota d’água do descontentamento popular foi a medida para salvar os bancos: o Estado doou cerca de 3 bilhões de dólares à oligarquia financeira

Exatamente como seu colega venezuelano Hugo Chávez, Lucio Gutiérrez - vencedor das eleições de 24 de novembro passado - tornou-se conhecido primeiramente como participante de um levante militar. No dia 21 de janeiro de 2000, um grupo de jovens oficiais, apoiado por milhares de índios da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), ocupou por algumas horas a sede do Poder Legislativo e a do Poder Executivo dessa república andina de 13 milhões de habitantes, provocando a queda do governo de Jamil Mahuad1.

Antes mesmo de uma dolarização decidida por um poder executivo em situação desesperada, a gota d’água para o descontentamento popular fora a medida tomada para salvar os bancos em 1999: o Estado dera de presente, então, cerca de 3 bilhões de dólares a uma oligarquia financeira que dilapidara, ilegalmente, o equivalente a duas reservas monetárias e usurpara as economias de toda uma vida de centenas de milhares de pequenos poupadores2. As palavras de ordem da campanha de Gutiérrez romperam com a vulgata neoliberal: luta contra a corrupção; redução da pobreza; investimentos públicos na saúde e na educação; promoção das “cinco garantias” (social, cidadã, jurídica, ambiental e alimentar); estímulo à competitividade criadora de empregos. É a mesma base sobre a qual havia fundado, em 2001, seu movimento político - o Partido Sociedade Patriótica de 21 de janeiro (PSP) - e reatado a aliança com os índios.

Uma experiência sem precedentes

Mas o movimento indígena equatoriano não é um simples apêndice da dinâmica gutierrista. Desde a fundação da Conaie, em 1986, e principalmente depois do levante nacional de 19903, os índios souberam combinar luta social e prática institucional. Depois de um período de não aceitação do que definia como uma “democracia excludente”, a Conaie decidiu não mais deixar à oligarquia tradicional o terreno eleitoral. Em aliança com setores não indígenas ligados à esquerda alternativa e aos movimentos sociais, ela criou, em 1995, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik-Novo País (MUPP-NP). Nos 27 municípios que hoje controla, o MUPP-NP pratica um estilo de democracia participativa e multicultural4.

ntem

Desde a fundação da Conaie, em 1986, e principalmente após o levante nacional de 1990, os índios souberam combinar luta social e prática institucional

Favorável à união das forças progressistas, o Pachakutik finalmente decidiu, na primavera de 2002, apoiar a candidatura de Gutiérrez. Os resultados obtidos pelo ex-coronel nas regiões indígenas dos Andes e da Amazônia, bem como os avanços do próprio MUPP-NP - que passa de seis para onze deputados5 - mostram que a implantação do movimento indígena pesou. Para o Pachakutik, essa vitória - em completo descompasso com os ritmos de construção de uma força política ainda muito nova - representa um desafio considerável e, ao mesmo tempo, uma experiência sem precedentes na América Latina.

O descalabro da situação econômica

A discussão sobre a formação do governo provocou os primeiros desentendimentos públicos com o PSP. Para Miguel Lluco, coordenador nacional do MUPP-NP, a co-responsabilidade governamental deve expressar-se, entre outras formas, pela obtenção de ministérios “não periféricos” pelos indígenas. Ao invés de ser marginalizado no governo, o Pachakutik preferiria contentar-se com uma aliança parlamentar cuja solidez dependerá da fidelidade de Gutiérrez a seus compromissos fundamentais, dentre os quais a recusa da integração à ALCA6 e do envolvimento do Equador no conflito colombiano em função dos interesses de Washington, que exerce enorme pressão nesse sentido.

De qualquer forma, Gutiérrez não dispõe de maioria parlamentar (o próprio PSP só conta com seis deputados) e deverá fazer acordos não só com uma social-democracia (16 deputados) que, por ora, pratica o oportunismo, mas também com forças centristas e populistas que barganharão seu apoio por um preço alto, como o Partido Roldosista Equatoriano (PRE) do ex-presidente Abdula Bucaram, exilado no Panamá.

Em aliança com setores ligados à esquerda alternativa e aos movimentos sociais, a Conaie criou o movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik-Novo País

Porém, o mais preocupante é a situação econômica. Em 2003, os juros da dívida externa pública (mais de 12 bilhões de dólares, perto de 80% do PIB) custarão 2 bilhões de dólares para o Equador. Calcula-se o déficit fiscal de 2002 em quase 250 milhões de dólares. Parece que a gestão eminentemente obscura do ex-ministro da Fazenda, Carlos Emanuel, hoje foragido, nada tem a ver com esse resultado que provocou uma polêmica entre o governo que sai e Gutiérrez, muito preocupado com a falta de transparência dos números oficiais. Mas o mais grave é o déficit crescente da balança de pagamento e da balança comercial (em parte, um efeito perverso da dolarização), que ultrapassam 1,7 e 1,4 bilhão de dólares, respectivamente.

Oligarquias e corporações mafiosas

Diante dessa situação catastrófica, o movimento indígena manifestou sua disposição de não fazer reivindicações irresponsáveis, exigindo coerência e transparência na elaboração das políticas públicas. Por sua vez, Gutiérrez não descansou enquanto não arredondou as arestas de seu discurso. Preocupado em tomar distância - ao menos taticamente - de Chávez e mesmo de Luiz Inácio Lula da Silva, reservou sua primeira viagem pós-eleitoral a Washington e usou uma visita a Bogotá como pretexto para evitar encontrar-se, no início de dezembro, com o presidente venezuelano e Fidel Castro, que estavam em Quito para a inauguração do museu-memorial do pintor Guayasamín.

Mesmo o projeto de um governo simplesmente “limpo” e eficaz choca-se com obstáculos perigosos. O compromisso anticorrupção do novo presidente é, no entanto, digno de crédito: ele já pagou pessoalmente sacrificando sua carreira militar a esse compromisso e não pode ser suspeito de querer encorajar a prática predatória da classe política tradicional. Mas os clãs que vivem de rendas e os interesses corporativos mafiosos estão profundamente enquistados na própria estrutura do Estado e dispõem de enorme capacidade de chantagem e de sabotagem. Além disso, a corrupção tem raízes profundas em todas as instâncias de uma administração pública quase sempre muito mal paga - situação dificilmente superável a curto prazo, dada a bancarrota fiscal do Estado.

A importância da transparência

Gutiérrez não dispõe de maioria parlamentar e deverá negociar não só com a social-democracia oportunista, mas também com forças centristas e populistas

A consciência dessas dificuldades talvez explique o fato de o Equador não ter vivido grande euforia pós-eleitoral. Os sinais de mudança de atmosfera são mais sutis: a deferência um pouco forçada com que os jornalistas agora se dirigem aos líderes indígenas, que nunca foram tão vistos nas telas, e a repentina preocupação das organizações patronais com a “dívida social” do país.

Os setores sociais organizados que apoiaram o coronel vivem, por sua vez, numa prudente expectativa. Ninguém questiona a necessidade de um governo de entendimento nacional, mas muitos enfatizam que esse tipo de acordo não pode ser fruto de uma simples soma de interesses setoriais. Para Kintto Lucas, editor-chefe do bimensal de esquerda Tintají, o coronel “deve compreender que não tem como agradar a todo mundo. Os acordos e as divergências devem ser transparentes para que as pessoas constatem que não estão mentindo para elas. A pior coisa que poderia acontecer ao novo governo seria as pessoas se sentirem enganadas. Isto seria o naufrágio da esperança alimentada por milhões de equatorianos.”

(Trad.: Iraci D. Poleti)

1 - Segundo as estimativas, os equatorianos que vivem na pobreza representam entre 70% e 80% da população.
2 - A salvação dos bancos teria custado o equivalente a 24% do PIB. Os gastos sociais representavam, em 1999, 7% do PIB; os gastos com educação, 3%; os gastos com a saúde, 2,2%.
3 - Outras marchas nacionais e levantes indígenas pacíficos ocorreram em 1992, 1994, 1995 e 2001.
4 - O MUPP-PN conquistou, igualmente, o governo de cinco províncias num total de vinte e duas.
5 - Sobre 100 (120 na legislatura anterior).
6 - O Pachakutik defende o fortalecimento das alianças econômicas regionais e a aproximação entre a Comunidade Andina e o Mercosul.




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