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A principal preocupação do escritor Günter Grass é com a releitura acrítica do nacional-socialismo pelas jovens gerações que, após quatro décadas de República Democrática Alemã, não se deixaram influenciar pelo antifascismo comunista
- (01/02/2003)
Quem diz naufrágio, pensa no Titanic. No entanto, houve outros mais trágicos, no século XX. A começar pelo do navio alemão Wilhelm Gustloff, que foi afundado no dia 30 de janeiro de 1945, perto de Dantzig, por um submarino soviético, o S-13. A bordo dele amontoavam-se vários milhares de civis alemães, temeroso da vingança do Exército Vermelho, que naquele momento estava em plena ofensiva, em direção da Alemanha - como também, é bom lembrar, os 1.336 marinheiros e auxiliares do submarino e os torpedos. Como não foi possível encontrar lista alguma dos passageiros, seu número continua desconhecido – exceto o de crianças e adolescentes: mais de 4 mil. Apenas algumas centenas de passageiros sobreviveram ao naufrágio. Entre os milagrosos sobreviventes, o narrador, nascido durante essa trágica viagem e que, quase seis décadas depois, relembra essa história para os leitores.
Ou melhor, essas histórias. A história do barco propriamente dito, o mais prestigioso navio de cruzeiro da Kraft durch Freude1, entidade voltada para o lazer, fundada pelo dirigente nacional-socialista Robert Ley com o objetivo de “cooptar” a classe operária. A história do comandante do S-13, Alexander Marinesko, condecorado com uma medalha de herói da União Soviética por aquele torpedo, dedicado a Stalin, mas que também passou vários anos num Gulag. A história do homem que deu o nome ao navio, Wilhelm Gustloff, um chefete do partido nazista da Suíça que se tornou um “mártir” do nazismo e de sua cidade natal, Schwerin, após ter sido assassinado, no dia 4 de fevereiro de 1936, por um estudante judeu. A história deste último, David Frankfurter, que imaginava que, com seu gesto, iria “despertar seu povo”. A história de Herschel Grynspan que, para vingar seus companheiros, faria o que seria a senha para a “Noite de Cristal”, matando, em Paris, o diplomata Ernst von Rath. A história do narrador, jornalista free-lance após ter passado pelas redações dos jornais de Axel Springer2 e ter feito algumas matérias para o jornal Tageszeitung3. E, finalmente, a história do internauta que decidiu reabilitar o “mártir” Wilhelm Gustloff e revelar o martírio dos náufragos do navio do mesmo nome...
Günter Grass supera-se nesses labirintos onde se perde a linearidade das narrativas tradicionais: ele gosta de passar de uma personagem para outra e de um tema para outro, além de multiplicar as idas e vindas entre o passado e o presente. Daí o título, En crabe (Como caranguejo) 4, mais revelador da iniciativa do escritor do que do romance propriamente dito.
O livro nada tem a ver com um simples exercício de estilo. O autor se entrega ao tema, deliciado, para melhor enfiar, e tornar a enfiar, a faca na velha ferida, mal cicatrizada, que ele tanto gosta de fuçar há várias décadas: a relação – tão dolorosa quanto contraditória – que a Alemanha mantém com seu passado. Exemplo dela é a imagem dessa personagem incrível que é a mãe do narrador, a marceneira Tulla Pokriefke, originária de uma família muito popular de refugiados da Kochnévia, boa comunista da República Democrática Alemã e, apesar de tudo, saudosista das “boas” coisas do III Reich...
Mas a principal preocupação de Günter Grass é com a releitura acrítica do nacional-socialismo pelas jovens gerações que, após quatro décadas de República Democrática Alemã (RDA), não se deixaram influenciar pelo antifascismo comunista. Como se sabe, os grupos neo-nazistas proliferam mais do lado oriental do que do ocidental, após a unificação alemã. Uma descoberta dilacerante do narrador: o responsável pelo site neo-nazista e anti-semita que glorifica o “mártir” Wilhelm Gustloff não é senão seu próprio filho, Konny, de 16 anos, que ele abandonou – ou quase – à guarda de sua ex-mulher após o divórcio e que sua avó literalmente recrutou. Se a Alemanha abandona seus filhos, como o narrador fez com o seu, pode esperar por uma tragédia.
Entre uma narrativa “politicamente correta” – que silencia, por exemplo, sobre crimes de guerra representados pelo assassinato dos milhares de passageiros do Wilhelm Gustloff ou pelo monstruoso bombardeio de Dresden – e a releitura hagiográfica da barbárie nazista como a negação do genocídio, sobra um caminho estreito para a verdade histórica. E para o seguir, sem dúvida, será necessário caminhar como um caranguejo...
(Trad.: Jô Amado)
1 - “A Força pelo Prazer”.
2 - N.T.: Proprietário da maior rede de jornais sensacionalistas (“imprensa marrom”) da Alemanha.
3 - Herdeiro do movimento estudantil alemão da década de 60, o Tageszeitung publica mensalmente a edição alemã do Monde diplomatique.
4 - En crabe, de Günter Grass, traduzido por Claude Porcell, ed. Seuil, Paris, 2002, 240 páginas, 19 euros (75 reais)