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ENERGIA

Houdini não foi a Buenos Aires

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Só a cultura do espetáculo poderia imaginar que Evo Morales, Cristina Kirchner e Lula resolvessem, em poucas horas, os gargalos do abastecimento de gás no Cone Sul. Eles decorrem de duas crenças: na suposta generosidade infinita da natureza e no caráter "positivo" de qualquer aumento de consumo

André Ghirardi - (25/02/2008)

Sob o único foco de luz, no centro do palco escuro, o mágico aproxima-se da mesa. Da platéia vêem-se apenas a cabeça e os pés da linda jovem, salientes nas extremidades da caixa sobre a mesa. A platéia aterrorizada testemunha o mágico serrar ao meio a caixa e, presumivelmente, o jovem corpo. Após um momento de angústia geral, o mago profere enfim as palavras milagrosas: abre-se a caixa e a jovem salta inteira, saudável, até mais linda do que antes. Todos aplaudem delirantes, aliviados, gratos ao misterioso poder que permitiu resgatar a harmonia que parecia destruída.

Somente a lógica de criação de um espetáculo poderia explicar a expectativa de que o desequilíbrio da indústria regional de gás pudesse, de fato, ser resolvido na recente reunião dos presidentes de Argentina, Bolívia, e Brasil, em Buenos Aires. Da mesma forma que, na cena mágica, a jovem dentro da caixa teve separado o tronco das pernas, existe hoje uma dissociação entre oferta e demanda por gás natural na região. Especificamente há um descasamento entre o volume de gás diariamente disponível para exportação na Bolívia (cerca de 34 milhões de metros cúbicos), e o volume de gás boliviano demandado por Brasil e Argentina (cerca de 36 milhões de metros cúbicos por dia).

O problema não é novo, e tem sido exaustivamente analisado ao longo dos últimos dois anos. Os fatos são plenamente conhecidos: não há como aumentar de imediato a produção boliviana; o Brasil precisa de todo o volume a que tem direito por contrato firmado há dez anos; a Argentina consome cada vez mais do que consegue produzir, e precisa aumentar importações para garantir o suprimento básico à população. É uma questão aritmética, e a conta simplesmente não fecha. Apesar disso criou-se, na imprensa de véspera, a expectativa de que a reunião tripartite de 23 de fevereiro pudesse produzir uma solução mágica e que, tal como a jovem de circo, o mercado regional de gás ressurgisse intacto e sorridente sob o aplauso geral. Mas a realidade se impôs. Não houve mágica: Houdini não foi a Buenos Aires.

Podemos tirar proveito desta espécie de ressaca pela mágica que não houve. Mas para isso temos que fazer o dever de casa, e rever os comportamentos que nos levaram a esse impasse. Como disse o poeta florentino, perdonar non si può chi non si pente (não se pode perdoar quem não se emenda), e o problema do desequilíbrio na indústria de gás vai persistir se continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Refiro-me especificamente a dois equívocos, presentes em grau variado nos países da região, e que geram expectativas descabidas: um sobre produção, e outro sobre consumo. O primeiro é que os recursos naturais são um bem em si, algo como uma dádiva divina que temos no subsolo, e que de toda parte afluirão capitais para desenvolver esses recursos, cobiçosos dos grandes lucros que será possível obter. Não é assim. A indústria de gás natural é uma atividade que exige expor ao risco imensos volumes de recursos que, alternativamente, podem ser direcionados a outras atividades com remuneração mais segura. Portanto, a extração e uso do gás dependem de que se dêem condições para remuneração justa do capital empregado nessa atividade. Do contrário, o gás permanecerá debaixo da terra, onde poderá ter função simbólica, mas não contribuirá para a qualidade da vida material.

Na história da indústria, a repartição do valor gerado pelo gás favoreceu comumente as empresas, e não os Estados nacionais. É legítimo, portanto, negociar novas partilhas

É claro que existe, sim, uma disputa pela repartição do valor criado na produção e uso do gás. É também certo que, na história da indústria, essa repartição favoreceu mais vezes às empresas do que aos Estados nacionais detentores das reservas. É legítimo, portanto, que exista negociação pelo valor gerado. Mas pode haver paralisia, se os governos fizerem disso unicamente uma causa de revanchismo nacionalista. Essa questão é particularmente delicada na Bolívia de hoje, onde as disputas internas em torno da reestruturação do Estado criam incertezas desfavoráveis aos investimentos de grande porte necessários para aumentar a produção de gás.

O segundo equívoco, é julgar que o aumento do consumo é um bem em si, como na visão neoclássica da utilidade. Na realidade, a expansão do consumo só é benéfica na medida em que inclua os segmentos mais pobres da sociedade, e que exista suficiente produção para atender a esse consumo crescente. Todos os países da região enfrentam, em maior ou menor grau, o desafio de dar, a grandes contingentes marginalizados da população, acesso ao consumo. No Brasil, por exemplo, programas de inclusão social como Fome Zero, Luz para Todos, e Bolsa-Família constituem-se em pilares de atuação do governo, e têm contribuído diretamente para a pujança da economia em anos recentes. Programas desse tipo são direcionados ao aumento de consumo, principalmente de produtos básicos — entre eles, serviços de energia. Para que esse aumento de consumo não se dissipe simplesmente numa onda inflacionária, é preciso que a capacidade de produção dos bens mais solicitados tenha condições de expandir-se de forma compatível com a demanda crescente. É tarefa dos governantes administrar esse delicado equilíbrio entre produção e consumo.

Neste início de século 21, foi na Argentina que se deu o mais espetacular crescimento do consumo no Cone Sul. Após a brutal recessão de 2001, que levou a maior parte da população argentina a níveis graves de empobrecimento e privação, as políticas de governo a partir de 2003 concentraram-se na recomposição dos salários. Para conseguir o desejado aumento de consumo, essas políticas valeram-se também do controle de preços que, se não foi formal, nem por isso foi menos rígido, e atingiu principalmente a indústria de energia em seus diversos segmentos. Num primeiro momento, o maior consumo foi atendido pela capacidade ociosa então existente. Mas essa se esgotou rapidamente e, diante da contenção dos preços, o investimento que se fez foi insuficiente para atender ao galopante avanço do consumo. Para a indústria de energia, e especificamente do gás natural, isso resultou na relativa estagnação da capacidade de produção, sem que os preços sinalizassem à população a escassez crescente. O resultado é que hoje os sistemas de gás e energia elétrica da Argentina operam no limite máximo de suas capacidades. Há seis meses, durante o inverno de 2007 foi necessário parar unidades industriais por falta de gás. Nos dias de hoje, são rotineiras as interrupções de fornecimento de eletricidade em Buenos Aires. É, de fato, uma situação-limite.

O Brasil retomou os investimentos na Bolívia, queima óleo combustível em termelétricas e estabelece, pelo gás encanado, preços elevados. Mas não pode ir além disso

O que se pede do Brasil nesta situação? É simples. Que invista para aumentar rapidamente a produção na Bolívia, a despeito da fragilidade do marco regulatório, e que reduza seu próprio consumo, para que mais gás seja canalizado para a Argentina. Na medida do possível, ambas reivindicações têm sido atendidas. Em dezembro de 2007 o presidente Lula desafiou um clima político tenso, e foi pessoalmente a La Paz anunciar a retomada dos investimentos da Petrobras, a despeito das perdas (reais e simbólicas) que o Brasil sofreu durante a nacionalização da indústria de gás boliviana, em 2006. Do lado do consumo, há meses o Brasil arca com o custo de queimar óleo combustível numa grande usina termelétrica no Mato Grosso, que deixou de receber da Bolívia o gás contratado. Também nas refinarias brasileiras queima-se óleo combustível, para reduzir o consumo de gás.

Além disso, a população brasileira tem feito sua quota de sacrifício, através do preço que paga pelo gás. Quando utilizado nas residências em São Paulo, o gás natural tem preço trinta vezes (isso mesmo, trinta) maior do que pagam as residências de Buenos Aires. As indústrias brasileiras pagam três vezes mais do que as argentinas, pelo mesmo gás. O pedido adicional feito na reunião tripartite era o impossível: que o Brasil pusesse em risco os serviços de energia à própria população para subsidiar o consumo descontrolado do vizinho.

Mas nem tudo está perdido. Estão em construção, no Brasil e na Argentina, terminais marítimos que possibilitam importar da África e do Oriente Médio o gás natural liquefeito. O produto é muito caro. Mas é essa a solução disponível a curto prazo. E temos que trabalhar bem para que funcionem a tempo esses terminais. Do contrário o conflito entre os três países tenderá a se acirrar nos próximos meses, em detrimento do combalido objetivo de integração regional. Há muito gás na região. Só falta tomar imediatamente as medidas necessárias para reequilibrar oferta e demanda: acordos viáveis para investimento, e preços transparentes aos usuários. Não podemos simplesmente esperar por milagres.

Mais:

Nem ensaio publicado no Diplô Brasil, André Ghirardi analisa em detalhes a natureza da indústria de gás, os centros de produção, consumo e as vias de transporte do combustível no Cone Sul, as tensões geradas pelo aumento do consumo e os caminhos para superá-las

Gás natural na América do Sul: do conflito à integração possível
Desigualdades, ressentimentos e imprevisibilidades têm gerado tensões no comércio de gás entre Bolívia, Argentina e Brasil. Mas há saídas — e as empresas estatais podem jogar um papel decisivo para torná-las viáveis. Texto de assessor da presidência da Petrobrás abre série Ensaios Diplô



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