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GEOPOLÍTICA DA CRISE

O jogo triangular das potências

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Dez anos depois do governo George Bush pai, o atual presidente norte-americano, longe de reatar com o “multilateralismo” adotado por ocasião da guerra do Golfo, reforça, agora, uma posição de “unilateralismo” sob a aparência de uma “coalizão”

Gilbert Achcar - (01/12/2001)

A freqüente analogia entre os atentados e Pearl Harbor tem um objetivo evidente: justificar a nova versão do intervencionismo de Washington

Raramente um acontecimento terá sido tão mal interpretado, no que diz respeito ao impacto sobre as relações internacionais, quanto os atentados ocorridos em Nova York e Washington. Evocou-se, muitas vezes, o ataque a Pearl Harbor no dia 7 de dezembro de 1941. Para os “falcões”, esse tipo de analogia tem um objetivo evidente: justificar a nova versão do intervencionismo de Washington. Realmente, depois da “guerra humanitária” do governo Clinton, é sob o signo da “guerra contra o terrorismo” que o novo governo Bush tem a intenção de contribuir para pôr o planeta na linha.

Ao mesmo tempo, o Departamento de Estado tenta fazer passar a mensagem, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, de que os Estados Unidos teriam, finalmente, optado pelo “multilateralismo” que, no início, a nova equipe na Casa Branca parecia recusar1. Ora, a comparação dos acontecimentos em curso com a guerra do Golfo é muito esclarecedora quanto a esse ponto. Na época, para reconciliar o país e a opinião pública com a guerra, George Bush pai se preocupara em cercar-se de uma coalizão internacional2 bem ampla, prevalecendo-se das resoluções da ONU e obtendo a cumplicidade, ativa ou passiva, de Moscou e Pequim. Fatores esses que tiveram um papel determinante no sinal verde que, em janeiro de 1991, o Congresso deu, por estreita maioria, para a utilização das forças armadas norte-americanas.

EUA vão à guerra só com o fiel Anthony Blair

Dez anos mais tarde, George Bush filho, longe de reatar com o mesmo tipo de “multilateralismo”, mergulha um pouco mais no “unilateralismo”, sob a aparência de uma “coalizão”. Como Hubert Védrine disse bem,“os Estados Unidos continuam unilateralistas em sua nova aliança3”. Retomemos a comparação com a guerra do Golfo. Em 1991, os Estados Unidos agiam no âmbito de um mandato do Conselho de Segurança ainda que, na prática, a guerra do Golfo fosse conduzida em nome da ONU, mas não por ela - como não deixou de assinalar o secretário-geral de então, Javier Pérez de Cuellar. O governo Bush pai chegou a usar como pretexto os limites do mandato da ONU – como desejavam seus parceiros regionais – para justificar o fato de não ter lançado seu exército contra Bagdá para derrubar o regime de Saddam Hussein. Desta vez, em compensação, para usar os termos do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, “é a missão que determina a coalizão, e nós não permitimos que coalizões determinem a missão4”. A qual, evidentemente, é estabelecida por Washington.

Segundo o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, “é a missão que determina a coalizão, e nós não permitimos que coalizões determinem a missão”

Na realidade, os Estados Unidos recusaram, deliberadamente, a oferta do Conselho de Segurança que, através de sua resolução 1368, de 12 de setembro, se declarara pronto para tomar todas as medidas necessárias para reagir aos atentados da véspera, dentro do contexto da Declaração das Nações Unidas. Eles rejeitaram a proposta de seus aliados mais próximos, que se apressaram em invocar, pela primeira vez, o artigo V do Tratado do Atlântico Norte – que trata da solidariedade defensiva dos Estados membros da Aliança Atlântica. Preferiram partir para a guerra só com o fiel Anthony Blair (que más línguas chamam atualmente de US Vice-president Blair) e se arrogaram o privilégio de fazer apelo a ajudas militares individuais dos aliados, segundo suas próprias necessidades, segundo suas próprias condições e sob seu comando exclusivo.

As exigências de Bush

“Ou vocês estão conosco, ou estão com os terroristas”, declarou Bush em seu discurso perante o Congresso no dia 20 de setembro de 2001. E, no dia 6 de novembro, ao receber seu colega francês, Jacques Chirac, dirigiu aos “coligados” a seguinte advertência: “Um parceiro de coalizão deve fazer mais do que apenas expressar seu pesar; um parceiro de coalizão deve realizar sua tarefa […]. Não penso em nenhuma nação específica no momento em que lhes falo. É necessário conceder a todos o benefício da dúvida. Mas, a longo prazo, será importante que as nações saibam que terão contas a prestar por sua inércia.”

Essa mensagem se destinava, de modo visível, aos países muçulmanos, claramente menos numerosos e menos engajados ao lado dos Estados Unidos do que em 1991. Mas era martelada na presença de um dos aliados ocidentais de Washington. Embora participando da escalada geral na manifestação de solidariedade para com os Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro e enviando soldados para ajudá-los - de forma comedida – no Afeganistão, a França, mais uma vez, prodigalizou conselhos não solicitados aos dirigentes norte-americanos, pedindo-lhes para não reagirem de maneira brutal e unilateral demais, convidando-os, principalmente, a passarem pela ONU. Num primeiro momento, foi apoiada por seus parceiros da União Européia.

Virada nas relações internacionais

Contudo, a evolução dos acontecimentos trouxe uma nova decepção àqueles que esperavam ver emergir uma atitude européia, unificada e autônoma, em relação aos Estados Unidos, no plano político-militar. Seguindo os passos de Blair, o chanceler alemão Gerhard Schröder, depois de usar seus aviões-radar Awacs contribuindo para a vigilância do espaço aéreo norte-americano, decidiu despachar um contingente da Bundeswehr, atendendo a pedido de Washington, sob o risco de uma importante crise política em sua própria coalizão. A Itália de Silvio Berlusconi não ficou atrás. O fato de que esses países - e outros membros da União Européia - tenham respondido assim, individualmente, aos pedidos norte-americanos, é uma prova eloqüente dos limites da “política externa e da política de segurança comuns”.

Os EUA recusaram oferta do Conselho de Segurança que se declarara pronto para tomar as medidas necessárias para reagir aos atentados de 11 de setembro

No entanto, se os observadores puderam falar de uma virada nas relações internacionais, tal fato não se refere às relações de Washington para com seus aliados tradicionais e, sim, para com a China e a Rússia, duas potências cuja oposição aos Estados Unidos levou, há alguns anos, a uma cooperação militar e política maior, em nome da luta contra a “hegemonia unipolar”. Desse ponto de vista, os bombardeios norte-americanos do Afeganistão não poderiam, de forma alguma, ser comparados aos da Sérvia, aliada de Moscou e de Pequim. Realmente, as duas capitais se opõem, tanto quanto Washington, ao “terrorismo islâmico”; até haviam montado, a partir de 1996 e com três repúblicas da Ásia Central ligadas a Moscou (Casaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão), o “grupo de Xangai” para lutar junto contra a militância islâmica. Em junho passado, esse grupo se transformou na Organização de Cooperação de Xangai, tendo o Uzbequistão como sexto membro. A Rússia e a China estavam, pois, bastante predispostas a apoiar uma luta internacional contra o islamismo radical.

As preocupações da China

Entretanto, depois de 11 de setembro, ao proclamar seu apoio de princípio à luta contra o “terrorismo”, Pequim manteve uma atitude de reserva semelhante à que expressara seu voto de abstenção no Conselho de Segurança, quando da guerra do Golfo. Preocupados em não ofender Washington antes da adesão de seu país à Organização Mundial do Comércio (OMC) – aceita em Doha, no dia 10 de novembro de 2001 – os dirigentes chineses, contudo, condicionaram o seu apoio: propuseram que o contra-ataque aos atentados se efetuasse no âmbito da ONU e solicitaram reciprocidade de apoio a sua própria luta contra o “terrorismo islâmico” no Sinkiang, e mesmo contra o “separatismo” de Taiwan.

Por outro lado, Pequim tem inúmeras razões para se preocupar com o atual rumo dos acontecimentos: a perspectiva da instalação duradoura das forças dos Estados Unidos em suas fronteiras ocidentais; o estreitamento das ligações de Washington com o Paquistão, de um lado, e com a Índia, de outro, diminuindo a margem de manobra da China, que apoiava o primeiro para melhor neutralizar o segundo; o novo passo dado pelo Japão na recuperação da capacidade política de intervenção militar externa; a intensificação das pressões norte-americanas para que os chineses cessem suas entregas de material militar a Estados acusados de apoio ao “terrorismo”, enquanto os norte-americanos se recusam a diminuir suas entregas de armas a Taiwan; e enfim, é claro, a aproximação entre Moscou e Washington, a qual a China receia que desemboque numa anuência russa ao projeto norte-americano do escudo antimísseis.

Um notável jogo triangular

A França pediu aos Estados Unidos que não reagissem de maneira brutal e unilateral demais e que respeitassem as iniciativas da ONU

Mais do que uma distensão concreta, o fato é que as relações entre Pequim e Washington até se envenenaram um pouco devido à recusa norte-americana em suspender as sanções impostas à China, este ano, por haver fornecido a Islamabad material que poderia ser utilizado na fabricação de mísseis – o que os dirigentes chineses negam. Recusa que os irrita ainda mais por terem os Estados Unidos, depois de 11 de setembro, suspendido as sanções impostas ao Paquistão e à Índia em nome da luta contra a proliferação nuclear. Tal passivo fez-se presente na reunião de cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), realizada em Xangai, em outubro, e que deveria ser a oportunidade de destacar a solidariedade dos países da região para com os Estados Unidos em guerra. Ora, apesar da satisfação divulgada oficialmente, o resultado foi decepcionante para Washington: a resolução final da cúpula não expressa apoio direto à ofensiva norte-americana e salienta a necessidade de situar as ações empreendidas contra o terrorismo no âmbito da ONU e do direito internacional.

Aliás, essa cúpula foi o momento de um notável jogo triangular entre os presidentes Vladimir Putin, Jiang Zemin e Bush: no dia 19 de outubro, o presidente norte-americano reunia-se com seu colega chinês sem conseguir convencê-lo da legitimidade do projeto norte-americano do escudo antimísseis. No dia seguinte, o encontro entre Putin e Jiang resultava numa declaração conjunta de apelo à rápida cessação dos bombardeios no Afeganistão e reafirmando a simpatia dos dois países pelo tratado ABM, que limita os dispositivos antimísseis e que Bush considera superado. Dois dias depois, a reunião entre o líder russo e o norte-americano terminava com uma nota mais reconfortante para o segundo: o presidente russo declarava estar convencido que os dois países chegariam a se entender sobre a questão da defesa antimísseis, enquanto Bush, mais uma vez, fazia um apelo para, “realmente”, se superar a guerra fria.

EUA e Rússia: um jogo de interesses

Esse jogo triangular - em que Putin aparece mais que os outros, o que ele parece apreciar - não começou com acontecimentos recentes. Desde que subiu ao poder, o presidente russo atua no cenário internacional em duas direções prioritárias e que correspondem aos interesses dos dois principais exportadores de seu país: o setor de hidrocarbonetos e a indústria bélica. Reforçou os vínculos com os clientes dos armamentos russos, particularmente a China, a Índia e o Irã, com grande perda para Washington5. Também cortejou os dois principais clientes potenciais dos hidrocarbonetos russos: a China, novamente, que será alimentada com petróleo siberiano, através de um oleoduto de 2.400 quilômetros, a partir de 2005, e a Alemanha, de quem Moscou já é o principal fornecedor de gás e um fornecedor muito importante de petróleo, e que, além do mais, ocupa o primeiro lugar entre os credores da Rússia. Além disso, estreitou os vínculos entre Moscou e Bagdá, esperando que o fim do boicote imposto ao Iraque libere os promissores contratos acertados com a indústria petrolífera russa.

A virada nas relações internacionais não se refere às relações de Washington com seus aliados tradicionais e, sim, com a China e a Rússia

O Vladimir Putin que, em julho de 2001, assinou com a China um tratado de cooperação e de ajuda mútua por um período de vinte anos, e cujas cláusulas políticas são implicitamente dirigidas contra Washington, é o mesmo que encontrou George W. Bush quatro vezes depois que este tomou posse, havendo, a cada vez, manifestações de amizade e bom entendimento. Não é difícil compreender o motivo dessa solicitude mútua. Escaldado pela fria acolhida que a Europa lhe dispensou no início de seu mandato, o presidente norte-americano compreendeu que precisava cativar a Rússia para fazer passar junto a seus aliados, e mesmo em seu próprio país, o projeto do escudo antimísseis que se tornou um de seus principais objetivos. O presidente russo, por sua vez, percebeu que esse projeto – que não tem efeito neutralizador sobre a dissuasão nuclear russa, pelo menos num futuro previsível – poderia vir a ser uma moeda de troca muito valiosa nas relações com os Estados Unidos.

Putin tenta aproximação com a Europa

A lista das reivindicações formuladas em Moscou – como medidas de compensação por uma anuência russa ao desejo do governo Bush de anular ou de modificar radicalmente o tratado ABM, a fim de poder efetuar novos testes de mísseis antimísseis sem nenhuma limitação – não parou de aumentar durante os últimos meses. Compreende: uma nova redução simétrica e contratual das armas estratégicas dos dois países, a Rússia querendo diminuir as despesas de manutenção de uma força nuclear, atualmente muito superior às necessidades de sua dissuasão, para poder aumentar o orçamento de suas forças convencionais; a redução da dívida externa de Moscou junto aos credores dos governos do Clube de Paris; o apoio norte-americano à solicitação russa de adesão à OMC, com perspectivas para 2004, e a abolição de obstáculos no caminho para isso, tais como a emenda Jackson-Vanik, de 19746.

Assim que ocorreram os atentados de 11 de setembro, o presidente Putin agarrou imediatamente a oportunidade que se lhe apresentava para melhorar, sem grandes dificuldades, sua posição de negociação, marcando pontos junto à Alemanha e aos europeus7. O novo entendimento manifestado no Ocidente quanto à guerra russa na Chechênia é, de fato, de natureza a atenuar as oposições parlamentares às concessões desejadas por Moscou, como ilustrou a calorosa acolhida dispensada pelo Bundestag (Parlamento alemão) a Putin. Entusiasmado pela repentina melhora de suas relações com a Otan, Putin até se permitiu sonhar com a obtenção de uma participação russa nas decisões da Aliança, ou com sua transformação em organização política, abrangendo membros sem status militar8. Além disso, a Rússia foi recompensada pelo anúncio de um próximo investimento de 4 bilhões de dólares pela gigante do petróleo norte-americano, Exxon, no campo de Sakhalin 1, no extremo leste do país.

Um envolvimento de baixo risco

A China propôs que o contra-ataque se desse no âmbito da ONU e pediu reciprocidade de apoio em sua luta contra o “terrorismo islâmico”

Para a Rússia, a atitude do presidente Putin custa pouco como contrapartida, ao menos a curto prazo – contrariamente à de Mikhaïl Gorbatchev, em 1990, que sacrificou um cliente privilegiado de Moscou, o Iraque, no altar das relações com o Ocidente após haver abandonado um império. O Afeganistão dos taliban está, há muito tempo, na mira de Moscou, que ameaçara bombardear o país em represália ao apoio de Cabul à fração islamista da rebelião chechena. Mais ainda, já estava existindo uma colaboração entre norte-americanos e russos contra Cabul depois da ruptura de Washington com seus ex-amigos taliban: um grupo de trabalho sobre o Afeganistão, organizado pelos presidentes Clinton e Putin em junho de 2000, se reúne periodicamente desde então.

Concretamente, além das informações transmitidas pelos serviços russos em Washington sobre a rede Al-Qaida, inimigo declarado dos dois países, Moscou envolveu-se muito pouco: descartando qualquer perspectiva de contribuição militar direta para a guerra, a Rússia abriu seu espaço aéreo aos aviões norte-americanos – oficialmente, para a passagem exclusiva dos vôos humanitários. Prometeu participar das operações de resgate de aviadores norte-americanos, sabendo que a probabilidade de que os taliban possam abater aviões é, na prática, mínima. E aumentou sua ajuda militar à Aliança do Norte, que já apóia há muito tempo e que deseja ver no poder em Cabul – contrariamente ao Paquistão, aliado regional privilegiado de Washington. Como prova suplementar de sua boa vontade, Moscou decidiu, sem muito pesar, desmantelar duas bases de escuta eletrônicas situadas no Vietnã e em Cuba, sendo que a deste último país cobre o território dos Estados Unidos9.

Os trunfos do “grande jogo” petrolífero

A ajuda aparentemente mais espetacular de Putin a Washington é seu sinal verde para a movimentação de tropas norte-americanas nas ex-repúblicas soviéticas limítrofes do Afeganistão. Ora, mesmo a esse respeito, a concessão não é tão importante quanto se poderia pensar à primeira vista. Na verdade, os Estados Unidos haviam estabelecido uma cooperação militar com o regime autoritário do presidente uzbeque Islam Karimov bem antes do dia 11 de setembro – de fato, há mais de cinco anos10. O presidente russo não teria tido condições de proibir a Washington o acesso ao Uzbequistão, onde militares norte-americanos já se encontravam. No que se refere ao Tadjiquistão, a atitude de Moscou continua ambígüa: por ocasião de sua recente visita a Duchanbe, passando por Moscou, Rumsfeld não obteve resposta firme sobre a utilização dos aeroportos desse país, feudo da Rússia.

A cúpula de Xangai, realizada em outubro, foi o momento de um notável jogo triangular entre os presidentes Vladimir Putin, Jiang Zemin e George Bush

Portanto, as concessões russas concretas são bem menos consideráveis do que parecem. O maior risco assumido por Putin – o que provoca mais reticências e críticas em seu próprio círculo e em seu exército – é ver os Estados Unidos instalarem, de modo duradouro, sua presença militar no Afeganistão e na Ásia Central, fortalecendo assim, consideravelmente, seus trunfos no “grande jogo” petrolífero e estratégico que atualmente está em curso nessa parte da ex-URSS11. Os generais russos, entretanto, estão persuadidos de que o Afeganistão constitui uma arapuca tão grande, que nunca Washington chegará a controlar esse país, e alguns até se regozijam ante a perspectiva de ver os Estados Unidos e seus aliados caírem, por sua vez, na armadilha fatal que outrora haviam preparado para a União Soviética. Mas, apesar disso tudo, o presidente russo tomou o cuidado de anunciar a seus generais, às vésperas de sua viagem para Washington, um novo aumento dos soldos e do orçamento militar.

O unilateralismo norte-americano

Do lado norte-americano, não são tão tolos como poderia levar a pensar a ingenuidade demonstrada por George W. Bush em suas relações com seu colega russo. Por ocasião da reunião de cúpula de meados de outubro, o presidente norte-americano nada cedeu quanto ao essencial: anunciou, de forma unilateral, a redução do arsenal nuclear norte-americano ao nível considerado suficiente pelo Pentágono, recusando-se a ficar de mãos atadas por um novo tratado Start, como o que os presidentes William Clinton e Boris Ieltsin haviam imaginado e que Putin reivindica; reafirmou sua determinação em anular unilateralmente o tratado ABM, se necessário, para avançar em matéria de defesa antimísseis.

Como sempre, os dois gurus rivais do “realismo” norte-americano no domínio das relações internacionais – Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger – expressaram o que é a essência do pensamento de Washington: ambos enfatizaram, recentemente, a importância da determinação de seu país em agir unilateralmente, e designaram o Iraque como o próximo alvo da ação norte-americana12. Em suma, como já confirmam algumas semanas passadas após os atentados, o dia 11 de setembro tem servido, sobretudo, para , intensificar o novo rumo hegemônico e unilateralista adotado pelos Estados Unidos desde o fim da guerra fria.
(Trad.: Iraci D. Poleti)

1 - Uma boa ilustração desse esforço e uma definição do novo “multilateralismo”, esclarecedora apesar de seu caráter diplomático, podem ser encontradas na fala de Richard Haas, diretor de planejamento político no Departamento de Estado, divulgada por seus serviços sob o título “After September 11: American Foreign Policy and the Multilateral Agenda”, Office of International Information Programs, US Department of State, Washington, 14 de novembro de 2001.
2 - É o que esquece – um exemplo entre muitos outros – Edward Luttwak que, em “New Fears, New Alliances” (New York Times, 2 de outubro de 2001), considera que uma “aliança das grandes potências pela ordem internacional”, como a atual, é única desde a que se opôs à onda revolucionária de meados do século XIX! O autor acredita no advento de uma “revolução na política externa norte-americana”.
3 - Le Monde, 16 de novembro de 2001.
4 - “Face the Nation”, CBS, 23 de setembro de 2001.
5 - No dia 2 de outubro de 2001, em plena lua de mel russo-ocidental, a Rússia assinava um acordo de base para a entrega de 7 bilhões de dólares em armas ao Irã!
6 - Destinada, originalmente, a forçar Moscou a liberar a emigração dos judeus russos, essa emenda impede a normalização permanente das relações comerciais norte-americanas com a Rússia, submetendo-a à aprovação anual do Congresso norte-americano.
7 - Ler, de Nina Bachkatov, “A aposta política de Vladimir Putin”, Le Monde diplomatique, novembro de 2001.
8 - Sem uma ou outra condição, Moscou declara não poder aceitar a adesão dos Estados bálticos à Otan, o que fará parte da agenda da reunião de cúpula da Aliança em Praga, em novembro de 2002.
9 - O general Anatoly Kvashnine, chefe do Estado-Maior russo, declarou que só com o aluguel da base cubana de Lourdes – ou seja, 200 milhões de dólares por ano – a Rússia poderia fabricar e lançar vinte satélites militares e dispor de inúmeros radares modernos. O Vietnã, por sua vez, reivindicava 300 milhões de dólares pelo aluguel anual da base de Cam Ranh, utilizada, originalmente, para espionar a marinha chinesa.
10 - Ler, de C. J. Chivers, “Long Before War, Green Berets Built Military Ties to Uzbekistan”, New York Times, 25 de outubro de 2001.
11 - Ler, de Vicken Cheterian, “O novo ‘grande jogo’”, Le Monde diplomatique, novembro de 2001.
12 - Ler, de Zbigniew Brzezinski, “A New Age of Solidarity? Don’t Count on It”, Washington Post, 2 de novembro de 2001; e, de Henry Kissinger, “Where Do We Go From Here?”, Washington Post, 6 de novembro de 2001.




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