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Os muitos dilemas da literatura policial brasileira

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Os detetives Espinosa e Mandrake, aquele mais do que este, são conseqüência de uma necessidade de auto-afirmação que ainda permeia a literatura de entretenimento no Brasil.

Paulo Polzonoff Jr. - (22/02/2008)

Num artigo sobre literatura policial [1] escrito para a seção Palavra do jornal Le Monde Diplomatique-Brasil, Olivia Maia, ela própria uma escritora do gênero, diz que são dois os dilemas deste tipo de ficção no Brasil. O primeiro é a própria literatura, diz ela. O segundo seria a polícia. Eu, que não sou matemático nem nada, diria que são muitos mais os dilemas da literatura policial brasileira. Algo a ver com conjunto e subconjunto, se bem me lembro do que a professora explicava naquelas manhãs tristes, frias e tediosas.

A começar pelas referências que temos. Rubem Fonseca é o primeiro nome que surge sempre que se fala de literatura policial no Brasil. Mas Rubem Fonseca é um escritor de literatura policial?, pergunta Olivia Maia e muitos outros. Eu confesso que tenho o escritor leblonino em baixa conta. Não o considero nem um bom escritor de literatura policial nem um bom escritor de literatura, qual seja o subgênero. Há quem arrisque que, como Raymond Chandler, Rubem Fonseca faz alta literatura. Há controvérsias.

No exterior, contudo, Rubem Fonseca é tido, sim, como um escritor de policiais tupiniquins. E, bem, como o nível de competição é alto, ele não é bem cotado. Mas o objetivo deste texto, veja bem, não é falar mal da literatura de Rubem Fonseca. E sim desenhar o cenário da literatura brasileira contemporânea na qual, divergências à parte, ele é um dos expoentes.

Ao falar de Rubem Fonseca, percebo que há certa esquizofrenia no que diz respeito ao caráter da literatura policial no Brasil. Ora, por que não se aceita que o escritor seja tão-somente um escritor de livros policiais? A resposta está na própria pergunta: o advérbio. Sempre que se fala de literatura policial usa-se coisas como o “tão-somente”. Que serve, não é preciso ser gênio para perceber, para limitar o gênero a um plano inferior. É como se disséssemos: daqui para cima, só há espaços para Grandes.

Sendo simplista, se poderia dizer que, se Rubem Fonseca faz alta literatura, ele não poderia fazer literatura policial. Eu confesso que sou exigente demais para me deixar conquistar por esta dicotomia. Para mim, Rubem Fonseca não faz nem alta literatura nem literatura policial. E isto, acredite, é bom.

Deixemos, um pouco, Rubem Fonseca de lado.

Gênero menor, você diz. Entretenimento puro e simples, acrescenta. É, sim, uma possibilidade. A literatura policial tem um objetivo claro: elucidar um mistério. E, para isso, se utiliza de uma fórmula repetida à exaustão: crime, apresentação dos suspeitos e do detetive, pistas e, por fim, a resolução. Um bom livro policial nos obriga a lê-lo até o fim, sem parar. Eu acho que é um dos grandes prazeres da vida se deparar com um bom livro deste tipo.

A questão toda sobre a grandeza ou pequenez da literatura policial está na fórmula. Diz o senso comum que algo que siga uma receita pronta é menor, porque mais fácil. Ops! Vejo muitos problemas no senso comum. Me ocorre agora, por exemplo, que o soneto é uma fórmula. E, bem, vale a pena mencionar o poeta Bruno Tolentino, nem que seja apenas para despertar a curiosidade no leitor que não é admirador de sonetos e não conhece o poeta. A “fórmula”, tanto na poesia quanto na prosa, pode ser libertadora. É aí que entram os grandes autores de literatura policial. E os (extintos) grandes sonetistas.

Mas quem é que precisa perceber isso? A rigor, ninguém. O Brasil não precisa de bons autores de romances policiais se não faz questão disso. É tentador escrever um panfleto dizendo que os escritores deveriam perceber a grandeza da literatura policial, que a literatura policial não é gênero menor coisa nenhuma, que muitos autores que almejam escrever alta literatura deveriam olhar com mais carinho para a literatura policial, que a academia deveria ver com mais profundidade o gênero e que até a Academia Brasileira de Letras deveria ter em seus quadros um escritor de livros policiais.

Eu jamais escreveria uma baboseira destas. E por uma boa razão: a literatura policial brasileira precisa interessar, antes de mais nada, aos poucos brasileiros leitores. E por que não interessa? Garçom, por favor, me traga mais um chope que vai começar a sociologia de botequim: a melhor do tipo.

Literatura policial e ética

Tenho a impressão de que toda a boa literatura policial lida com valores éticos claros. Para começar, os mais óbvios de todos: o mal precisa vencer o bem e a justiça precisa triunfar. Há, aqui, dois pontos bem interessantes, sobretudo no que diz respeito ao triunfo da justiça. Sabemos que na vida ela nem sempre triunfa. E (não me canso de dizer) Jó figura na Bíblia por um bom motivo: para confundir nosso senso inato de justiça terrena e divina. Estou quase certo de que você jamais pensou nisso, mas a literatura policial serve, quando não para reafirmar as bases da justiça, para confundir nossa noção do que é certo e errado.

Ética é o pilar central de toda a literatura policial. Ora, não é preciso ser nenhum Sérgio Buarque ou Gilberto Freyre ou Florestan Fernandes ou Fernando Henrique Cardoso para saber que o brasileiro tem um probleminha com este tema. Tudo bem, talvez não você nem eu; mas o povo como um todo. Herança dos ratos das caravelas.

Neste caso, o problema não se resume à falta de interesse, por parte dos leitores, pela literatura policial. É interessante perceber que nossa literatura (de qualquer tipo) está contaminada por esta amputação ética, este desapego à verdade e à justiça. Há alguns bons anos já o bem deixou de triunfar sobre o mal nos livros escritos no Brasil. Esta é mais do que uma escolha estética; é uma crença compartilhada de que finais bem resolvidos são de mau-gosto. É kitsch que haja justiça. A verdade nos soa inverossímil. Dá no que dá.

Não à toa, outro dia alguém me disse que considerava literatura policial genuinamente brasileira livros como Cidade de Deus, de Paulo Lins. Pode haver algo mais sintomaticamente equivocado? Livros nos quais os bandidos são quase heróis jamais podem ser considerados literatura policial. Você pode argumentar, claro, que Lawrence Block concebeu seu Bernard Rhodenbarr, um ladrão que, por vias indiretas, acaba resolvendo crimes que não cometeu, mas dos quais é acusado. Um ladrão! Um criminoso! Sim, mas repare: ele está em busca da verdade, do triunfo da justiça.

A vida não é assim!, você esbraveja. A justiça nem sempre triunfa. A verdade nem sempre prevalece. Você tem razão. E, novamente, Jó está aí para que jamais discordemos quanto a este fato. A pergunta, contudo, nos remete à velha e boa catarse do teatro grego: quem diz que a literatura tem que reproduzir a realidade? Na literatura policial o bem vence o mal não porque a realidade seja assim; ele vence porque é nosso desejo de que isso aconteça. Bem, pelo menos deveria ser o nosso desejo, num país algo mais são.

Eis porque literatura policial é considerada algo menor, irrelevante, sem importância, tanto por escritores quanto por leitores – e alguns bons leitores. Os escritores estão preocupados em reproduzir a realidade de acordo com o olhar cínico que se tornou tristemente comum. Os leitores, por sua vez, não estão imunes ao mesmo cinismo triste. Pelo contrário, contaminados por esta doença, não conseguem ver beleza em outra coisa que não romances que sejam “um soco na boca do estômago”, que mostrem a “realidade nua e crua”. Ou qualquer outro clichê do gênero.

Detetives ruins demais

E é aqui que entramos no segundo dilema apontado por Olivia Maia: a polícia. Ou, aumentando um pouco mais o leque: os detetives. Estes seres concebidos por escritores de menor e maior talento com um propósito inusitado: lutar contra as evidências da realidade e fazer com que a justiça triunfe ao final de algumas centenas de páginas. Como estou sempre poluído pela idéia de Jó enfrentando os azares da vida mesmo sendo ele um homem puro, arrisco a imagem do detetive, seja ele policial ou não, como uma espécie de anjo persistente que luta contra a vontade inequívoca de Deus de fazer com que os puros desçam aos infernos sem jamais deixarem de ser puros.

A literatura policial mundial vive uma extraordinária safra de bons detetives, que nos dão muito mais do que a elucidação lógica do mistério. Desconfio que o Poirot de Agatha Christie e o Sherlock Homes de Doyle não sobreviveriam um dia nesta selva de detetives com muito mais alma do que raciocínio lógico. Para citar apenas um, eis que temos o Comissário Salvo Montalbano, criação de Andrea Camilleri. Em meio a uma polícia extremamente corrupta, ele resolve os crimes com malícia e – por que não? – sabedoria. Não há nada daquele discurso de “o sistema é contra nós”. Montalbano é inteligente demais para se curvar ao sistema. O que faz com que ele, de vez em quanto, olhe para a mazela à sua volta com curiosidade e graça.

Os detetives brasileiros são sérios demais. E, por isso mesmo, ruins demais. Não têm apego à verdade. E, não raro, são esquematizações que se prestam apenas à exaltação do cinismo. Veja se não é o caso de Mandrake, o detetive recorrente de Rubem Fonseca. Ele é um advogado novo-rico e priápico que vê o mundo de um modo totalmente maniqueísta: de um lado, os ricos maus e ridículos; de outro, os pobres injustiçados, que exalam a própria essência do bem.

Eis porque não consigo jamais conceber a literatura de Rubem Fonseca como alta: falta-lhe qualquer ambigüidade. Tudo é facilmente separável na coluna A e B. Equação de primeiro grau, para evocar novamente a professorinha de matemática.

O que dizer, então, do delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza? Nada poderia ser mais sintomático da literatura policial que se faz hoje no Brasil. O delegado lê filosofia. Precisa dizer mais? Digo mesmo assim. Ele, o detetive/delegado é acometido, aqui e ali, por crises homéricas devido à corrupção da corporação a que pertence. Não há um só livro em que não fique evidente certa necessidade de pensar o mundo à sua volta.

Ora, uma das premissas da literatura policial é de que, em havendo um crime, haverá dificuldades para esclarecê-lo. A corrupção é tão-somente (vale o advérbio, neste caso) um destes percalços. Supervalorizá-la é um erro primário.

Espinosa e Mandrake, aquele mais do que este, são conseqüência de uma necessidade de auto-afirmação que ainda permeia a literatura de entretenimento no Brasil. Os autores não querem apenas o reconhecimento do público leitor. É necessário um reconhecimento maior, não só da academia mas, principalmente, dos colegas. É como se o escritor de livros policiais dissesse que só se dedica ao gênero por uma concessão. “Na verdade, eu sou muito mais do que isso”, sugerem.

Como leitor, aprendi que na literatura policial contemporânea, mais é menos. Nas mãos de um editor mais exigente, aquelas enfadonhas explicações de Mandrake sobre armas brancas ou vinhos portugueses jamais iriam a público. Público este que, assim como os escritores, também precisam de uma desculpa para consumir literatura policial. Daí porque o interesse por detetives inverossímeis como Espinosa: ele dá ao leitor médio a sensação de estar lendo algo remotamente parecido com alta literatura. Alguns acham até que estão lendo filosofia!

É impossível criar um detetive que seja apenas um detetive? Será que ele tem sempre que analisar a corrupção como se fosse um antropólogo? Será que ele precisa mesmo dizer ao leitor que pesquisou tudo o que havia disponível sobre charutos?

É óbvio que não.

Nos detetives que tenho lido, o que mais me chama a atenção é a banalidade do ofício. E como os bons autores de policiais ressaltam este ponto. O leitor, hoje em dia, é convidado não só a participar da resolução de um crime, como também a compartilhar da vida do detetive. Problemas emocionais ou familiares, crises existenciais causadas pela inevitável decadência do corpo e até dúvidas religiosas. Mas sem – por favor! – pernosticismo.

A polícia, pois, não é um problema. Ela é apenas o cenário. Um mundo corrompido onde quer que seja. Cabe ao bom escritor criar um personagem que se destaque neste meio, que o olhe meio de cima (lembram da imagem de anjo, alguns parágrafos antes?), sempre certo de que sua missão não é “consertar o sistema” – velho sonho autoritário. A missão do detetive é apenas uma: fazer com que a verdade e a justiça triunfem. E, se calhar, causar também algum riso no leitor.

Meu impulso, neste parágrafo final, é fazer alguma conclamação à la Lênin: meninos, mãos à obra! Resistirei a ele. Até porque, para nós, bons leitores, os dilemas da literatura policial brasileira nos dizem pouco ou nada. Ora, se não há escritores brasileiros capazes de produzir uma leitura policial contemporânea de qualidade, paciência. Há suecos, italianos, frances, ingleses, russos e, claro, americanos investindo o melhor de si no gênero. Sem delongas sobre a respeitabilidade ou não da literatura policial. E, melhor, sem a desgraçada necessidade de auto-afirmação que assola nossos escritores. Sinceramente, não troco meu Montalbano por Mandrake algum. E fico aqui torcendo, em fantasia, para que um dia Matthew Scudder encontre Espinosa e lhe mostre com quantos volumes da coleção Os Pensadores se faz um bom romance policial.



[1] O autor se refere ao artigo “O dilema da literatura policial brasileira”.

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