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Deliver Us From Evil, da norte-americana Amy Berg, examina de modo impiedoso e indigesto a pedofilia na Igreja Católica — e sua inacreditável impunidade. Uma das provocações: numa religião em que o sexo é pecado, molestar uma criança não seria equivalente a transar com uma pessoa qualquer?
- (23/04/2008)
O sujeito simpático da foto abaixo é Oliver O’Grady, um padre norte-americano. Estima-se que, em pouco mais de dez anos, ele tenha molestado e violentado sexualmente mais de cem crianças com idades a partir de 9 meses. Deliver Us From Evil ("Livrai-nos do Mal", na versão em inglês do Pai Nosso) conta a história de como ele, assim como vários outros pedófilos, continuam livres.
Esse filme da diretora Amy Berg tem pretensões sociológicas e psicológicas: a pedofilia na Igreja Católica é examinado como fenômeno social e como crise dos indivíduos modernos. Para mostrar como o padre O’Brady teve acesso a tantos momentos sozinho com as crianças, o documentário desenvolve primeiramente uma interessante explicação do poder da religião, da credibilidade que se atribui instantaneamente a esses representantes da Igreja que simbolizam, para os crentes, a encarnação de Deus.
Assim, algumas famílias testemunham para a câmera entre revolta e culpa. Revolta pelo fato de a maioria dos atos de violência ter acontecido dentro de suas próprias casas (às vezes, por vários anos), e culpa por não as terem percebido. Metaforicamente, explica uma psicóloga, o estupro é ainda pior do que se fosse por um homem comum: as crianças foram violadas por Deus, ou seja, é a Igreja que traiu a confiança dessas famílias.
O próprio padre O’Grady é o protagonista dessa história não só como objeto de estudo, mas como principal entrevistado. Chega a ser chocante vê-lo falar com calma, e por vezes risos, sobre sua atração por garotos e garotas em roupas de banho, nus... “Eu sabia que não era certo”, ele diz. “Mas era minha única chance de ficar sozinho com aquele garoto, então eu quis aproveitar”.
Essa lógica do absurdo piora quando notamos a ausência de culpa. Ele admite que não deveria ter cometido os atos, mas nunca responsabiliza seus desejos. De outro lado, também não há culpa (elemento este tão importante à doutrina católica) entre os membros da Igreja que sabiam do comportamento de O’Grady e nada fizeram. O documentário traça com precisão todos os indícios e denúncias que os superiores receberam e revela que a máxima medida adotada consistiu em transferir o padre-problema para paróquias próximas.
Neste momento, Amy Berg vai longe ao debater as relações de poder dentro da Igreja Católica. Ela cita o papel de padres nas eleições locais como razão principal para encobrir os casos de pedofilia. Alguns teólogos explicam a hierarquia dentro desta religião e sua especificidades: “a diferença de um católico para um presbiteriano ou luterano é que a principal virtude de um católico é a obediência, a submissão”.
O documentário tenta dar um passo adiante e compreender as origens da pedofilia. Por que haveria o número assombroso de 10% de pedófilos na Igreja, segundos algumas estatísticas? A resposta polêmica do filme aponta para o voto de castidade: impedidos de exprimir livremente seus impulsos sexuais, os padres transfereriam o desejo para os seres a eles submissos, numa substituição do que seria o papel servil de uma mulher na família patriarcal. O documentário completa o cenário de deculpabilização dizendo que, numa religião em que o próprio sexo é crime, não há diferença entre violar uma mulher adulta ou uma criança. Logo a Igreja não veria um problema assim tão grande nestes casos.
Curiosamente, o documentário desenvolve essas afirmações a partir de uma material limitado: são poucas as pessoas que depõem ao filme, assim como são poucos os especialistas, os dados e o material de arquivo. Amy Berg é ambiciosa mesmo dentro de uma pequena estrutura. Prova disso é a conclusão chocante envolvendo o atual Papa Bento XVI como um dos principais responsáveis pela dissimulação dos casos de pedofilia, e o presidente americano George W. Bush como o homem que impediu que o papa fosse investigado por esses casos.
Deliver Us From Evil suscitou opiniões diversas: parte da crítica e do público o rejeitou por seu conteúdo forte e impiedoso. Outros fizeram ressalvas à amplitude das conclusões, e somente um grupo menor mostrou admiração por esse pequeno filme incômodo. De fato, somado ao impacto do tema existe ainda o impacto das teses desenvolvidas pela diretora; o que faz deste documentário uma experiência interessante e indigesta.
Deliver Us From Evil (2006)
Documentário americano dirigido por Amy Berg.
Duração de 1h40.
Bruno Carmelo assina a coluna Outros Cinemas. Também mantém o blog Nuvem Preta, onde resenha e comenta outros filmes. Edições anteriores da coluna:
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