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A ameaça da guerra bacteriológica

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Embora apoiando a Convenção sobre Armas Biológicas, o presidente Clinton sucumbiu às pressões das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas. Em resumo, somente uma fração das instalações de defesa biológica norte-americanas podia ser inspecionada

Susan Wright - (01/11/2001)

A ameaça de uma guerra bacteriológica não pode ser separada da estratégia política e militar unilateral dos Estados Unidos

Após terem passado pela inimaginável destruição do World Trade Center e do Pentágono, os norte-americanos estão diante de algo ainda mais inimaginável: a guerra bacteriológica. Uma apreensão de dimensões inigualáveis, desde os temores da guerra nuclear da década de 50, se apoderou do público. Esse medo deveria garantir a aprovação, por parte da população, de qualquer medida, civil ou militar, tomada pelas autoridades em resposta a um possível ataque bacteriológico. No entanto, essa ameaça não pode ser separada da estratégia unilateral dos Estados Unidos.

O medo do apelo às armas biológicas – a “arma nuclear do pobre” – por países não ocidentais hostis e “irresponsáveis” tem sido debatido constantemente pelo Ocidente. No entanto, essas armas de destruição maciça foram inicialmente desenvolvidas pelos países industrializados, principalmente pelos Estados Unidos, pela Grã-Bretanha, pela França, pela ex-União Soviética, pela Alemanha, pelo Japão e pelo Canadá. 1 Alguns desses países defendem há muito tempo o desarmamento biológico, mas mantêm outros meios de destruição maciça, principalmente o poderio das armas nucleares, que servem para sua defesa e propiciam o avanço de seus objetivos geopolíticos.

Bactérias vs. armas nucleares

O governo inglês lançou, em 1968, a idéia de uma Convenção que suprimisse as armas biológicas, a Biological Weapons Convention, ratificada em 1971

O governo trabalhista inglês de Harold Wilson lançou, em 1968, a idéia de uma Convenção Internacional que suprimisse as armas biológicas. Com isso, tentava responder aos protestos contra os programas britânicos de guerra química e bacteriológica2. Ele optou por concentrar-se nas armas biológicas por dois motivos. Em primeiro lugar, seu governo, que havia empreendido esforços conjuntos com Washington, sabia que os Estados Unidos não renunciariam às armas químicas. Em segundo lugar, seus assessores avaliavam que as armas biológicas, extremamente sensíveis às condições climáticas e às mutações genéticas, teriam um impacto incerto e de utilidade duvidosa. Solly Zuckerman, assessor científico do primeiro-ministro, por exemplo, qualificou essas armas como “bala de canhão sem valor militar3”.

Na realidade, embora os países ocidentais nada tivessem a perder se abandonassem as armas biológicas (podiam contar com suas armas nucleares), tinham muito a ganhar privando os países não-nucleares de um possível meio de destruição maciço pouco oneroso4. Pouco depois, os Estados Unidos chegaram à mesma conclusão e, em novembro de 1969, o presidente Richard Nixon decidiu desmantelar o programa norte-americano de guerra biológica e apoiar a Convenção proposta por Londres. Como disse cruamente William Safire, seu redator habitual: “Se alguém utilizar germes contra nós, vamos vitrificá-lo com armas nucleares5.”

O exemplo gritante do Iraque

Na realidade, as potências ocidentais nada tinham a perder se abandonassem as armas biológicas, pois podiam contar com suas armas nucleares

Foi assim que uma assimetria estratégica entre o Ocidente e o resto do mundo se inseriu na Convenção de proibição das armas biológicas de 1971. Enquanto os países poderosos mantinham seu guarda-chuva nuclear, os países fracos que assinaram a Convenção sobre Armas Biológicas (Biological Weapons Convention – BWC) não dispunham de meio de dissuasão algum. Além disso, um bom número desses países fracos era também signatário do tratado de não-proliferação nuclear.

No final da guerra fria, a decisão norte-americana de submeter os Estados suspeitos de possuírem armas químicas ou biológicas – os “Estados delinqüentes” – a severas sanções econômicas aumentou essa assimetria. No Oriente Médio, os países ocidentais colocaram em prática uma política de “dois pesos, duas medidas”. Por um lado, observaram um silêncio quase total sobre o arsenal nuclear israelense e o desenvolvimento ultra-secreto de armas químicas e biológicas em Ness Ziona. Por outro, assistiu-se a uma intensa ofensiva de relações públicas e, em seguida, à prática de sanções econômicas, contra os países árabes vizinhos de Israel, suspeitos de se interessarem demais por essas mesmas armas.

O exemplo mais gritante dessa política foi o desarmamento obrigatório do Iraque. Nos anos que se seguiram à guerra do Golfo de 1991, o programa nuclear iraquiano militar foi desmantelado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), enquanto etapas inteiras de seu programa biológico e químico o foram, em 1998, pela Comissão Especial da Organização das Nações Unidas (Unscom). Apesar do sucesso desses programas, as sanções econômicas contra o Iraque foram mantidas, com terríveis conseqüências para a população e sem que Saddam Hussein e seus acólitos fossem tocados.

As lacunas da Convenção

O Ocidente observou um silêncio quase total sobre o arsenal nuclear israelense e o projeto ultra-secreto de armas químicas e biológicas em Ness Ziona

Por outro lado, os Estados Unidos, que insistem nas sanções contra os “Estados delinqüentes”, mostram pouco empenho em manter ou reforçar as medidas da Convenção, aplicando-as a si próprios. Na verdade, os governos Clinton e Bush enfraqueceram a Convenção, cujas recomendações já eram vagas.

Esta proíbe “o desenvolvimento, a produção e o armazenamento” de armas biológicas e de toxinas. Mas essa proibição contém importantes lacunas. Na verdade, a Convenção autoriza o desenvolvimento, a produção e talvez até o armazenamento de agentes biológicos patogênicos em quantidades limitadas,desde que estes estejam relacionados à produção de meios de defesa, tais como vacinas, remédios ou roupas de proteção especial. Da mesma maneira, na prática a pesquisa é admitida, uma vez que a Convenção não lhe faz referência. Além disso, não prevê mecanismo algum de verificação e de controle. Enfim, salvo no caso extremo do armazenamento de armas biológicas, é difícil distinguir usos defensivos e ofensivos, a menos que se faça uma análise aleatória das intenções de uns e de outros.

Em 1995, os signatários da Convenção decidiram negociar um protocolo de verificação e controle, especialmente um regime de inspeções que exigia a declaração de qualquer atividade ligada à guerra biológica. Mas essa busca de transparência tropeçou em problemas maiores, particularmente na diplomacia obstinada do governo Clinton.

A denúncia do New York Times

Os EUA, que insistem em sanções contra “Estados delinqüentes”, mostram pouco empenho em manter as medidas da Convenção, aplicando-as a si próprios

Logicamente, o ex-presidente apoiou firmemente a Convenção, mas sucumbiu às pressões das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas, que desejavam um regime fraco que não as expusesse aos controles estritos de inspetores internacionais. 6 Desde então, os negociadores norte-americanos impuseram cláusulas de salvaguarda que enfraqueceram seriamente as condições de inspeção e, em grande medida, confiaram o controle aos próprios países. Washington insistiu também para que fossem minimizadas as inspeções de instalações militares dos países que tivessem importantes programas de defesa biológica. Em outras palavras, somente uma fração das instalações de defesa biológica norte-americanas podia ser inspecionada.

No final da década de 90, um considerável número de especialistas avaliou que o protocolo de verificação e de controle tinha perdido sua essência. Nesse momento, teve início o novo governo Bush, cujo unilateralismo declarado7 desembocou em uma ofensiva contra o desarmamento. No dia 25 de julho de 2001, rejeitou todo o protocolo, que considerou não só ineficaz, mas também perigoso para a segurança nacional norte-americana. 8

Uma semana antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, o New York Times revelou uma das razões essenciais dessa decisão: o governo queria dissimular alguns programas de guerra biológica9. De acordo com a pesquisa do jornal nova-iorquino, três projetos pareciam particularmente inquietantes: o teste de uma instalação experimental utilizando organismos de modo geral inofensivos, mas dotados de características semelhantes às de agentes patogênicos que servem como armas biológicas; o teste de uma bomba bacteriológica, da qual alguns componentes não estavam em condições de funcionar; e um plano de engenharia genética sobre uma cepa resistente de antraz.

Um argumento infundado

Uma semana antes dos atentados de 11 de setembro, o New York Times revelou que o governo queria dissimular alguns programas de guerra biológica

O segundo projeto, o da bomba, constitui uma violação direta da Convenção, que proíbe formalmente o desenvolvimento, a produção e o armazenamento de equipamentos e de vetores capazes de liberar agentes patogênicos. Na verdade, todos os projetos situam-se no limite do que foi proibido pela Convenção, em uma zona obscura onde as distinções jurídicas já não fazem muito sentido. É fácil imaginar qual teria sido a reação do Ocidente se Osama bin Laden fosse apanhado fazendo a mesma coisa nas montanhas do Afeganistão.

Todos esses projetos minam a Convenção e estimulam o desenvolvimento de novas armas biológicas em todo o mundo. Um dos primeiros roteiros catastróficos que surgiu da engenharia genética foi a idéia de que alguém desenvolveria um agente patogênico modificado contra o qual não haveria a menor defesa10. Foi exatamente por isso que algumas vozes se elevaram, desde 1975, para exigir uma proibição absoluta de qualquer modificação genética desse gênero. O argumento segundo o qual seria necessário, no entanto, dar continuidade à engenharia genética sobre agentes patogênicos para criar uma vacina, é infundado. Na verdade, a natureza produz uma enorme quantidade de agentes patogênicos modificáveis, com um enorme número de genes alteráveis, para que uma única vacina seja eficaz. Todos os especialistas em defesa biológica sabem disso. Então, por que os Estados Unidos dão prosseguimento a esse projeto?

Desde o dia 11 de setembro, assiste-se a uma mobilização norte-americana de proteção contra o bio-terrorismo. O Congresso norte-americano prepara-se para destinar 1,5 bilhão de dólares para as defesas militares e civis nessa área. Uma parte desse financiamento talvez seja necessária para aumentar as medidas de proteção civil. Mas, na ausência de transparência democrática, esse apoio maciço ao programa de defesa biológica poderá minar ainda mais a Convenção, exatamente no momento em que ela deveria ser reforçada por um regime estrito de inspeção, exigindo a transparência por parte de todas as instituições que utilizam agentes patogênicos perigosos ou equipamentos de manipulação de agentes biológicos. Além disso, as proibições da Convenção deveriam ser ampliadas para abranger qualquer modificação de agentes biológicos com objetivos militares e qualquer esforço de pesquisa que caminhe nesse sentido. Essa proibição deveria ser absoluta e universal. Qualquer trabalho de modificação genética destinado a desenvolver vacinas ou remédios contra agentes patogênicos naturais deveria ser conduzido por laboratórios civis submetidos a regulamentações e controles internacionais. Somente assim as populações serão protegidas.
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)

1 - Ler Biological and Toxin Weapons: Research, Development and Use from the Middle Ages to 1945, org. por Erhard Geissler e John Ellis van Courtland Moon, ed. Oxford University Press, Oxford, 1999. Ler também, de Gilbert Achcar, “Le spectre du ‘bioterrorisme’”, Le Monde diplomatique, julho de 1998.
2 - Ler, de Susan Wright, “The Geopolitical Origins of the 1972 Biological Weapons Convention”, a ser publicado em The Biological Warfare Question: A Reappraisal for the 21st Century, sob coordenação de S. Wright.
3 - Ler a ata do UK Foreign Office Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha), Ronald Hope-Jones to Moss, 4 de julho de 1968, FCO 10/181, U.K. Public Records Office (Arquivo Público britânico).
4 - Ver telegrama 11305 do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Embaixada norte-americana em Londres, ao Departamento de Estado, 30 de julho de 1968, “UK Working Paper on Biological Weapons”, 30 de julho de 1968, arquivado como “secreto”, RG 59, POL 27-10, Arquivos nacionais.
5 - Ler, de William Safire, “On Language: Weapons of Mass Destruction”, New York Times, 19 de abril de 1998.
6 - Ler, de Susan Wright e David Wallace, “Varieties of Secrets and Secret Varieties: The Case of Biotechnology”, Politics and the Life Sciences 19(1), Universidade de Maryland (Estados Unidos), março de 2000, pp. 33-45.
7 - Ler, de Philip S. Golub, “A tentação imperial de Bush”, Le Monde diplomatique, julho de 2001.
8 - Ler, de Elizabeth Olson, “U.S. Rejects New Accord Covering Germ Warfare”, New York Times, 26 de julho de 2001.
9 - Ler os artigos de Judith Miller, Stephen Engelberg e William J. Broad no ’New York Times’ do dia 4 de setembro de 2001, e sua obra coletiva, Germs: Biological Weapons and America’s Secret War, ed. Simon and Schuster, Nova York, 2001.
10 - Ler, de Royston C. Clowes et alii, “Proposed Guidelines on Potential Biohazards Associated with Experiments Involving Genetically Altered Microorganisms”, 24 de fevereiro de 1975, Recombinant DNA History Collection, MC100, ed. Institute Archives, MIT Libraries, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos.




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