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EDITORIAL

A guerra de mil anos

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Com a “guerra contra o terrorismo” e o “choque entre civilizações”, as divisões deixam de ser entre fortes e fracos, entre os opulentos e os deserdados e passem a ser entre “eles” e “nós”. Ou seja, a “luta de classes” dá lugar à bandeira da “luta contra o Outro”, um conflito eterno e sem solução

Alain Gresh - (01/09/2004)

Quanto mais “vilões” os EUA matam, maior é o número que surge de dentro de cada ruína de um prédio bombardeado no Iraque

O Iraque está em chamas. Percebem-se as conseqüências da ignorância norte-americana quanto à geografia local – Falluja pouco se parece com uma cidade do Texas e menos ainda com Marselha ou Toulon, libertadas em 1944 – e a arrogância de uma grande potência. De modo mais profundo, entretanto, essa humilhação é uma conseqüência direta do conceito de “guerra contra o terrorismo” lançada pelo presidente George W. Bush logo após os atentados de 11 de setembro de 2001.

No contexto dessa noção, cada novo incidente no Iraque obedece a uma seqüência lógica: os ataques no “triângulo sunita” só podem ser obra de pessoas nostálgicas do regime de Saddam Hussein ou de terroristas vinculados à al-Qaida; a resistência de Moqtada al-Sadr decorre da influência iraniana, um dos países membros do Eixo do Mal; qualquer ação armada é uma prova de que “eles” odeiam os valores ocidentais. Como explica ingenuamente um cabo das forças norte-americanas no Iraque: “Nós devemos matar os vilões1.” Mas quanto mais “vilões” os Estados Unidos matam, maior é o número que surge de dentro de cada ruína de um prédio bombardeado, de cada vilarejo submetido a revistas e controles sistemáticos.

Golpe de misericórdia

Também seria possível perceber o drama iraquiano de uma maneira diferente e muito mais simples. Felizes por se terem livrado de uma ditadura particularmente detestável e por terem terminado as sanções que, durante treze anos, sugaram a própria essência do país, os iraquianos aspiram, pura e simplesmente, a viver melhor, a viver em liberdade e independência. Nenhuma das promessas de reconstrução foi cumprida, a energia elétrica continua sendo constantemente cortada, persiste a insegurança, cresce a miséria. As tropas norte-americanas deram o golpe de misericórdia a um país já enfraquecido por inúmeros boicotes, deixando que fossem incendiados os ministérios e dissolvendo o exército – adotando o modelo que já haviam aplicado em 1945 no... Japão. Por outro lado, os iraquianos não querem viver sob o jugo de um invasor de quem desconfiam que os únicos interesses são as jazidas de petróleo e objetivos estratégicos. Terminou o tempo da colonização. No Iraque, a revolta da década de 1920 contra o invasor britânico, comemorada há várias décadas, impregnou todas as memórias com uma presença tão indelével quanto a da Resistência ou da Libertação na França.Os iraquianos partilham essa aspiração à independência com os outros povos e não há qualquer necessidade de sondar sua “psicologia”, ou sua “alma”, ou submeter o Corão a complexas exegeses, para o compreender; também não há necessidade alguma de ver nesse país uma cabeça-de-ponte da cruzada contra o “terrorismo internacional”. O comportamento dos iraquianos é absolutamente racional e a única solução consiste numa retirada rápida das tropas norte-americanas e na volta do país à soberania plena.

Os iraquianos não querem viver sob o jugo de um invasor de quem desconfiam que os únicos interesses são as jazidas de petróleo e objetivos estratégicos

A maneira pela qual os dirigentes políticos de uma grande potência compreendem uma situação que ocorre em alguma região do mundo determina suas opções estratégicas e diplomáticas: que vantagens representa para nós? Que farão nossos inimigos? Quais serão nossos aliados? Durante várias décadas, a “guerra fria” serviu de paradigma para explicar as evoluções planetárias. Quando ocorria alguma mudança em algum país longínquo, os estrategistas, os pesquisadores e os jornalistas perguntavam: será isso bom para a União Soviética? Bom para os Estados Unidos? As conseqüências dessa visão em preto e branco puderam ser bem avaliadas por ocasião de dois conflitos das décadas de 80 e 90 – o da Nicarágua e o do Afeganistão.

Efeitos da visão em preto e branco

Em julho de 1979, os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua após uma longa luta armada que pôs fim à ditadura da família Somoza. Lançaram um programa de reformas sociais vigorosas, principalmente no setor agrário. As liberdades fundamentais foram respeitadas e os partidos políticos de oposição, autorizados. Surgia uma possibilidade de que o país saísse da pobreza e do subdesenvolvimento. Mas não foi assim que entendeu o governo norte-americano. Para este, a derrota de um dos aliados dos Estados Unidos significava apenas o avanço do comunismo e da União Soviética em seu quintal privativo centro-americano. A CIA armava a antiga guarda nacional somozista. A partir de Honduras, os “combatentes da liberdade” iniciaram uma guerra sem tréguas, não hesitando em usar o terrorismo contra o regime sandinista, enquanto Washington tentava mobilizar a opinião pública e seus aliados contra o perigo totalitário na América Central. Havana e, em menor escala, Moscou, intensificaram sua ajuda aos sandinistas. A partir de então, a Nicarágua cairia na armadilha do confronto Leste-Oeste. A pressão permanente dos Estados Unidos e o empobrecimento do país em conseqüência das sanções econômicas acabariam resultando na derrota dos sandinistas nas eleições de 25 de fevereiro de 1990. De um dia para o outro, Washington perdeu o interesse pela Nicarágua e abriu mão de qualquer tipo de controle. O país se atolaria na miséria, mas jamais seria “comunista”.

A maneira pela qual os dirigentes políticos de uma grande potência compreendem uma situação que ocorre em alguma região do mundo determina suas opções estratégicas

O caso do Afeganistão é ainda mais emblemático. Em abril de 1978, embora fosse aliado da União Soviética, o regime foi deposto por um golpe de Estado comunista. O novo governo deu início, de forma brutal, a reformas radicais nesse país conservador e enfrentou uma oposição muito forte, especialmente no campo. Washington começou a armar o exército guerrilheiro dos mujahidin. Em dezembro de 1979, o exército soviético invadiu o Afeganistão, mudando os governantes numa operação tipicamente colonial, condenada pela comunidade internacional. Mas os Estados Unidos e o Ocidente preferem ver nessa atitude a prova da vontade hegemônica dos soviéticos, a confirmação das ambições seculares do Kremlin de se projetar rumo aos “mares quentes”, na direção do Golfo. O novo governo de Reagan vê a ocasião de “fazer sangrar” o exército vermelho, ainda que pagando o preço de se aliar ao diabo. Com a ajuda dos serviços secretos paquistanês e saudita, Washington armou os fundamentalistas mais radicais, em detrimento da oposição moderada. Opôs-se a quaisquer tentativas de acordos políticos e diplomáticos patrocinados pelas Nações Unidas, prolongando deliberadamente o conflito2. O resultado é conhecido. Os soviéticos decidiram retirar-se do Afeganistão, mas, após sua vitória, os Estados Unidos perderam o interesse pelo destino do país – assim como pelas redes islâmicas radicais que contribuíram a criar com a ajuda de um tal Osama bin Laden. Abandonado, o Afeganistão começou por sucumbir numa guerra civil, antes de cair, em 1996, nas mãos dos taliban.

Simplismo político

Sabe-se, nos dias de hoje, que longe de corresponder a um grande plano de expansão, a decisão soviética de intervir no Afeganistão foi tomada por um comitê central dividido e, principalmente, preocupado em evitar que um país fronteiriço e aliado tradicional, caísse nas mãos de islamitas radicais. Também é sabido que, apesar da pose de potência militar, a União Soviética era totalmente incapaz de representar uma ameaça ao mundo, muito menos de o dominar. No Ocidente, entretanto, o espantalho da ameaça soviética foi constantemente agitado para mobilizar a opinião pública. Em 1983, dois anos antes da chegada de Mikhail Gorbatchev ao poder em Moscou, Jean-François Revel, sempre perspicaz, anunciou o fim das democracias, incapazes de lutar contra “o mais temível dos inimigos externos, o comunismo, atual variante e modelo perfeito do totalitarismo3”... Esse “modelo perfeito” não duraria senão mais alguns anos.

É lógico que a grade de leitura “Leste-Oeste” tinha suas razões de ser. Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética defendiam seus interesses de grandes potências, mas a vida política de cada país não se restringia a um grande tabuleiro em que se enfrentavam a Casa Branca e o Kremlin – os primeiros, apoiando sem remorsos as ditaduras latino-americanas ou a Indonésia de Suharto e a segunda intervindo brutalmente na Hungria (1956) ou na Tchecoslováquia (1968). Esse simplismo levava a subestimar as realidades nacionais que não se enquadrassem tão facilmente nesse esquema, assim como quaisquer outros desafios que se colocassem para a humanidade: a deterioração do meio ambiente, a pobreza crônica, o alastramento de novas doenças – principalmente a Aids – etc. Finalmente, o mundo saiu da guerra fria, os Estados Unidos venceram, mas os desafios subsistem. Assim como as causas de instabilidade.

O substituto do “império do mal”

O fim da União Soviética não deixou órfãos apenas as forças armadas e os serviços secretos norte-americanos (e, num contexto mais amplo, ocidentais) – privados de um inimigo que justificava sua existência e a de seu orçamento colossal –, mas também todos os centros de pesquisa estratégicos que haviam interpretado em tom grave a superioridade estratégica de Moscou e até prognosticado uma invasão soviética da Europa Ocidental. Mas o que poderia vir a substituir o “império do mal”?

As conseqüências da visão em preto e branco puderam ser bem avaliadas por ocasião de dois conflitos das décadas de 80 e 90 – o da Nicarágua e o do Afeganistão

No início da década de 90, a teoria do “fim da história”, lançada pelo professor norte-americano Francis Fukuyama de que apregoava a vitória definitiva do liberalismo ocidental – condenado a envolver todo o planeta – não obteve senão um sucesso relativo. Uma fração da direita conservadora – aquela que se opusera à distensão para com a União Soviética e a qualquer acordo com Mikhail Gorbatchev – procurava, pelo contrário, “um novo inimigo estratégico”. Anunciou que os Estados Unidos, embora sem adversários, passava agora a ser vítima de ameaças obscuras, ainda mais perigosas do que o comunismo: o terrorismo, os Estados-delinqüentes, as armas de destruição em massa. Paralelamente, um número cada vez maior de intelectuais e jornalistas diagnosticou a escalada firme de um novo adversário, o Islã, que não só dispunha de uma “ideologia forte”, como de uma base potencial de mais de um bilhão de seres humanos.

O consenso obtido pelo 11 de setembro

Em 1993, Samuel Huntington popularizou o termo “choque das civilizações4 ” (leia, nesta edição, artigo de Alain Gresh sobre o assunto). “Minha hipótese”, escreveu o professor norte-americano, “é a de que no mundo moderno os conflitos não terão fundamentalmente origem na ideologia ou na economia. As grandes causas de divisões da humanidade e as principais fontes de conflito serão culturais. Os Estados-nações continuarão desempenhando o papel principal nas questões internacionais, mas os principais conflitos políticos mundiais consistirão no enfrentamento de nações e grupos pertencentes a civilizações diferentes. O choque das civilizações irá dominar a política mundial.”

Porém, ainda estávamos no domínio da especulação, já que nenhuma dessas doutrinas conseguira um consenso entre as elites. Somente depois do 11 de setembro se instalaria a idéia de que o Ocidente estava novamente envolvido numa guerra mundial, que vinha após a guerra fria e a II Guerra Mundial. Traumatizada pelos atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, a opinião pública norte-americana acatou a “guerra contra o terrorismo”, uma guerra na qual “quem não está conosco é contra nós”. Mas quem é, então, este novo inimigo que toma o lugar do comunismo e do nazismo? O terrorismo? Mas este não é uma ideologia e, sim, um método de ação que torna difícil compreender o vínculo que une os separatistas corsos, o Exército Republicano irlandês (IRA) e a seita Aum. E a Al-Qaida? O combate a essa perigosa organização é da alçada da polícia e não envolve uma mobilização guerreira (leia, nesta edição, o artigo de Olivier Roy). Quem são os Estados-delinqüentes? Se é um exagero listar, no mesmo “eixo do mal”, a Coréia do Norte e o Irã, também é difícil classificar as ameaças que esses países representam no plano regional na mesma pasta em que antigamente se arquivava a União Soviética.

O choque entre duas civilizações

O que se vem esboçando gradativa e diariamente, por meio de alvos escolhidos e de campanhas ideológicas, é o choque entre duas civilizações – o Islã e o Ocidente

No entanto, o que se vem esboçando gradativa e diariamente, por meio de alvos escolhidos e de campanhas ideológicas, é o choque entre duas civilizações – o Islã e o Ocidente. Com as exceções da Coréia do Norte e de Cuba, os países visados pelos Estados Unidos – Iraque, Irã, Síria e Sudão – são todos muçulmanos; a ajuda incondicional de Washington ao governo de Ariel Sharon confirma esse preconceito. A “civilização” está em guerra contra a “barbárie”, proclamou o presidente Bush. “O mundo está dividido em dois campos”, retruca Osama bin Laden. “Um, sob a bandeira da cruz, como disse Bush, o chefe dos descrentes, e o outro sob a bandeira do Islã.”

Se esta teoria for verdadeira, então não será possível qualquer tipo de acordo, pois “eles” nos odeiam – não devido ao que fazemos, mas porque rejeitam nossos ideais de liberdade e democracia; será inútil, portanto, priorizar uma solução para esta ou aquela injustiça que abala o mundo muçulmano. Por outro lado, esse conceito induz a uma estratégia de guerra. Significa inserir cada embate num conflito de civilizações, um conflito eterno e sem solução: a luta dos palestinos, um atentado terrorista em Java, a resistência no Iraque, um incidente anti-semita num colégio de Paris ou um tumulto na periferia são todos considerados como elementos de uma ofensiva geral do islamismo. Participamos em todas frentes, inclusive a interna, de uma guerra mundial.

Islamafobia sem disfarces

O terrorismo não é uma ideologia e, sim, um método de ação que torna difícil compreender o vínculo que une os separatistas corsos, o IRA e a seita Aum

O general William G. “Jerry” Boykin, veterano dos comandos Delta (unidade de intervenção antiterrorista do exército norte-americano), foi nomeado, em junho de 2003, subsecretário adjunto da Defesa para informações dos Estados Unidos. Trata-se de um cristão evangélico que declarou, no Estado de Oregon, que os radicais islâmicos odiavam os Estados Unidos “porque nós somos uma nação cristã, porque nossos fundamentos e nossas raízes são judeo-cristãos. E o inimigo é um tipo denominado Satã5”. Numa outra ocasião, proclamou: “Nós, o exército de Deus, na casa de Deus, no reino de Deus, fomos treinados para tal missão”; e, referindo-se ao conflito na Somália contra os senhores da guerra muçulmanos: “Eu sabia que o meu Deus era maior que o deles, sabia que o meu era um verdadeiro Deus, e o deles, um ídolo6.” Após essas revelações, o general se desfez em desculpas, mas manteve seu posto e pôde exercer seus talentos “exportando” o sistema carcerário criado na base de Guantánamo para o Iraque, com os resultados que se tornaram notórios, em matéria de tortura7. Ainda que o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, tenha começado por defendê-lo, a conselheira nacional de segurança, Condoleezza Rice, fez questão de salientar: “Esta não é uma guerra entre religiões8”. O que, entretanto, é difícil de acreditar, quando se lê os depoimentos dos supliciados no Iraque, que eram obrigados a abjurar sua religião e a comer carne de porco.

E também quando se escutam ou vêem programas norte-americanos – e, às vezes, europeus – cuja islamofobia nem sequer é disfarçada. Ann Coulter é uma das mais populares comentaristas da direita norte-americana e seus livros são best-sellers; ela é constantemente convidada pelas grandes redes de informação de rádio e televisão, do noticiário Good Morning America ao programa The O’Reilly Factor. Em sua opinião, os muçulmanos tomarão o poder na França dentro de dez anos. Ela explica: “Quando combatíamos o comunismo, tudo bem, eles tinham assassinatos em massa e gulags, mas eram brancos e mentalmente sãos. Agora estamos em guerra contra pessoas absolutamente selvagens9.” E esclarece: “Vimos sendo atacados por muçulmanos selvagens e fanáticos há vinte anos. Não foi a Al-Qaida que prendeu nossos reféns no Irã. Não foi a Al-Qaida que colocou a bomba numa discoteca de Berlim Ocidental que levou Ronald Reagan a bombardear a Líbia10.” Mas a Líbia não é um país islâmico... “Você pode defender esse argumento, mas eu continuo vendo muçulmanos matar pessoas11.”

A luta contra o “Outro”

O conceito de “choque de civilizaçõs” induz a uma estratégia de guerra. Significa inserir cada embate num conflito de civilizações, um conflito eterno e sem solução

“Nós devíamos ter consciência da superioridade de nossa civilização”, rejubilava-se o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, no dia 26 de setembro de 2001. “(...) Um sistema de valores que conduziu todos os países que o adotaram a uma grande prosperidade e que garante o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades religiosas”. O presidente do Conselho de ministros italiano avaliou ainda que, devido à “superioridade dos valores ocidentais”, estes iriam “conquistar novos povos”, salientando que isto “já ocorreu com o mundo comunista e com uma parcela do mundo islâmico, mas, lamentavelmente, uma parte deste último permaneceu com mil e quatrocentos anos de atraso12”.

Em seu livro L’Obsession anti-américaine, Jean-François Revel louva o fato de que George W. Bush e vários dirigentes políticos europeus tenham visitado mesquitas após os atentados de 11 de setembro de 2001 com o objetivo de evitar, principalmente nos Estados Unidos, que os cidadãos árabe-americanos se tornassem alvos de “represálias indignas”. E afirma: “Esse escrúpulo democrático honra norte-americanos e europeus, mas não os deve deixar cegos diante do ódio ao Ocidente por parte da maioria dos muçulmanos que vivem entre nós13.” Isso está escrito com todas as letras: a “maioria dos muçulmanos”. Não se sabe se o filósofo pretende expulsá-los...

Essas declarações repercutem junto à opinião pública. A guerra fria, particularmente na década de 80, mobilizava pouco e foi, essencialmente, uma questão de estados-maiores; o comunismo já havia perdido grande parte de sua força de influência e o espantalho vermelho já não suscitava grandes caças às bruxas. A guerra contra o terrorismo desencadeia outros tipos de repercussão: uma parte da opinião pública ocidental e muçulmana está disposta a acreditar que os atuais conflitos dissimulem um choque entre civilizações. As divisões deixariam de ser entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre os opulentos e os deserdados e passariam a ser entre “eles” e “nós”. Os países ocidentais renunciariam ao conceito, desgastado, da “luta de classes” e se alinhariam sob a bandeira da “luta contra o Outro”. E se iniciaria, então, uma guerra de mil anos cujo único resultado seria o de confirmar a desordem estabelecida.

(Trad.: Jô Amado)

1 - Citado no artigo “GIs in Iraq are asking: Why are we here?”, International Herald Tribune, 12 de agosto de 2004.
2 - Ler, de Diego Cordovez e Selig S. Harrison, Out of Afghanistan. The Inside Story of the Soviet Withdrawal, ed. Oxford University Press, 1995.
3 - Ler, de Jean-François Revel, Comment les démocraties finissent, ed. Grasset, 1983.
4 - Ler, de Samuel Huntington, “The Clash of Civilizations”, revista Foreign Affairs, vol. 72, nº 3, 1993.
5 - Los Angeles Times, 16 de outubro de 2003.
6 - As declarações do general, na íntegra, foram as seguintes: “Because we’re a Christian nation, because our foundation and our roots Judeo-Christian… and the enemy is a guy named Satan”; “We in the army of God, in the house of God, kingdom of God have been raised for such a time as this”; “I knew my God was bigger than his. I knew my god was a real God and his was an idol”.
7 - Ler, de Sidney Blumenthal, “The religious warrior of Abu Ghraib”, The Guardian, Londres, 20 de maio de 2004.
8 - “This is not a war between religions. No one should describe it as such.”
9 - “When we were fighting communism, OK, they had mass murderers and gulags, but they were white men and they were sane. Now we’re up against absolutely savages.”
10 - “We’ve been under attack by savage, fanatical Muslims for 20 years. It wasn’t Al-Qa’ida that took our hostages in Iran, it wasn’t Al-Qa’ida that bombed the West Berlin discotheque which led to Ronald Reagan bombing Libya.”
11 - “You can make the argument, but I just keep seeing Muslims killing people.”
12 - Le Monde, 28 de setembro de 2001.
13 - Ler, de Jean-François Revel, L’Obsession anti-américaine, ed. Plon, 2002, p. 129.




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