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Para comentaristas e políticos do mundo ocidental, as negociações que resultaram da Conferência da Organização Mundial do Comércio em Doha “poderiam abrir caminho a um número incalculável de reformas, contribuindo para a abertura dos mercados”

Bernard Cassen, Frederic Clairmont - (01/12/2001)

Para o Washington Post, “os temas mais controversos foram menos resolvidos por acordos de fundo de que por artifícios lingüísticos”

Os comentários da imprensa anglo-saxônica, que fez do livre-comércio o principal de seus dogmas, refletem bem a natureza dos resultados da IV Conferência de Ministros da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Doha (Catar) de 9 a 14 de novembro de 2001: em primeiro lugar, um “ufa“ de alívio, depois a garantia de que a liberalização do comércio e dos investimentos se irá acelerar, embora haja ainda alguns obstáculos aqui e ali.

Para o New York Times, o importante é que a reunião terminou por um acordo – para o qual, a escolha do país que sediou a conferência não foi totalmente indiferente: “Não houve protestos de massa, como em Seattle ou em Gênova, pois o Catar limitou estritamente o número de visitantes1”. E, enfim, as negociações “poderiam abrir caminho a um número incalculável de reformas, contribuindo para a abertura dos mercados”, o que significa que “constituíram uma vitória para Robert Zoellick, chefe da diplomacia comercial americana”. Para este último e para Pascal Lamy, comissário europeu para o comércio, “ambos defensores convictos do livre-comércio” e entre os quais existem “fortes relações pessoais”, o trabalho ainda não terminou: “Sobram-lhes três anos para colocar seus colegas nos trilhos e transformar a agenda de Doha em reformas reais2.”

Um unilateralismo neoliberal agressivo

Embora se diga multilateral, não é o multilateralismo, e sim, efetivamente, um unilateralismo neoliberal agressivo que caracteriza a OMC

Essas sorridentes perspectivas bem que mereciam algumas concessões de forma. Para o Washington Post, “os assuntos mais sensíveis foram menos resolvidos por acordos de fundo de que por artifícios lingüísticos3”, sentimento compartilhado pelo Financial Times: “Chegar a um acordo exigiu tantos compromissos e reservas que a agenda final ficou praticamente sem significado”, mas, mesmo assim, “nada impede um novo ciclo dedicado ao acesso ao mercado4”.

A opinião sobre o balanço de Doha dos movimentos de cidadãos e organizações não governamentais mais engajadas no assunto é obviamente bem diferente e pode ser resumida desta maneira: “Se há quem se regozije com um novo ciclo, ainda que restrito, a OMC se desacreditou ao reafirmar a sua contribuição para a globalização liberal5.” A Organização e seus porta-vozes afirmam, evidentemente, que ela representa um sistema comercial multilateral baseado em regras. Mas não dizem que essas regras foram elaboradas e funcionam exclusivamente a serviço das grandes firmas multinacionais. E também evitam falar sobre a catequese desse sistema supostamente multilateral: privatizações, desregulamentação e liberdade absoluta dos movimentos de capitais; destruição dos Estados de bem-estar, dos serviços públicos e do que resta dos patrimônios nacionais suscetíveis de frear a realização desta catequese. De fato, não é o multilateralismo, mas efetivamente um unilateralismo neoliberal agressivo que caracteriza a OMC.

O AMI volta à cena

O Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), expulso pela porta da OCDE em 1998, corre o risco de voltar pela janela da OMC nos próximos anos

Dificilmente a Organização teria sobrevivido a um fiasco do tipo daquele de Seattle, de novembro de 1999, se não fosse pela lógica do sistema multilateral, que já enfrenta múltiplas críticas externas e internas (inclusive as de Joseph Stiglitz, ex-diretor do Departamento de Economia do Banco Mundial e Prêmio Nobel de Economia), e vem sendo questionada. Os defensores do livre-cambismo, que vêem no comércio uma panacéia capaz de dar respostas a todos os problemas da pobreza e do desenvolvimento, não têm do que reclamar: mesmo que seja a longo prazo (na maioria dos casos, por ocasião da V Conferência de Ministros, a ser convoca dentro de dois ano), “novos assuntos” entram no campo de competência da OMC: concorrência, mercados públicos, “facilitação” das trocas (inclusive aceleração dos trâmites alfandegários) e, principalmente, investimentos.

O Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) expulso pela porta da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1998, corre o risco de voltar pela janela da OMC nos próximos anos6. Quanto às negociações no âmbito dos acordos já adotados (a “agenda incorporada”, no vocabulário da OMC), inclusive o Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (AGCS), elas são fortemente incentivadas a irem em frente. Este AGCS, citado em apenas algumas linhas na declaração ministerial, é, de fato, uma máquina de guerra potencial contra os serviços públicos (onde estes ainda existirem), em particular os da saúde e da educação. É o que quiseram demonstrar os participantes das dezenas de manifestações que ocorreram na Europa, e principalmente na França, no último dia 10 de novembro.

Tudo aprovado, pouco resolvido

Ninguém, em Doha, questionou a contradição entre a expansão das trocas comerciais e o caráter finito dos recursos energéticos do planeta

Ninguém, em Doha, questionou a contradição entre a expansão das trocas comerciais, às quais nenhum limite é imposto – com a conseqüência da proliferação do transporte – e o caráter finito dos recursos energéticos do planeta. Quanto ao impacto ambiental do comércio (poluição atmosférica, degradação dos meios naturais, efeito estufa etc.), a declaração ministerial faz promessas de negociações futuras, porém estas não serão obrigatórias senão para os Estados que façam parte dos acordos ambientais já existentes. Os Estados Unidos, por exemplo, que se recusam obstinadamente a assinar o protocolo de Kyoto sobre o clima, ou a convenção de Cartago, sobre biossegurança, ficarão, portanto, livres de qualquer obrigatoriedade7. Isto irá incentivar outros países a não assinarem acordos multilaterais sobre o meio ambiente.

Foi analisado o avanço que representa o Acordo sobre os Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual que se referem ao comércio (Adpic) e à saúde pública – no plano do acesso aos remédios. A interpretação do acordo, que permite aos países produzirem medicamentos genéricos, foi aprovada em Doha. Mas, e para os que não os produzem e queriam importar? Nada foi resolvido: a declaração limita-se a instruir o Conselho dos Adpic para “achar uma solução rápida para este problema”. Podemos ter certeza que os laboratórios norte-americanos e suíços não irão desistir. Todavia, a declaração de Doha representa indiscutivelmente um ponto positivo para os países do hemisfério Sul – o único.

O absurdo da produção agrícola

A permissão da produção de medicamentos genéricos representa, indiscutivelmente, um ponto positivo para os países do hemisfério Sul – o único

Com relação a este aspecto, não se deve considerar que, em todas as áreas, exista um bom “Sul” e um “mau” Norte. Todos os governos do Sul, com a Índia à frente, fecharam questão – com os Estados Unidos e contra a União Européia – para impedir qualquer avanço em matéria de normas sociais e ambientais, apresentadas como um freio adicional às suas exportações, enquanto o seu endividamento os obriga a obter moeda forte a qualquer preço.

Este é, diga-se de passagem, o único objetivo dos planos de ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) impostos aos países carentes de crédito: é preciso que o país “beneficiário” exporte cada vez mais para evitar o atraso no pagamento de sua dívida. Dessa forma, o país em questão é levado a reorientar a sua produção agrícola, ou a uma exploração exagerada dos seus recursos naturais, em direção aos mercados externos e em detrimento do consumo local e do respeito pelo equilíbrio ambiental. Há situações que desafiam o bom senso. A do Brasil, por exemplo, cujo governo briga pela abertura dos mercados agrícolas europeus enquanto 60 milhões de brasileiros sofrem (e às vezes morrem) de desnutrição.

A tese do “exportar para viver”

Todos os governos do hemisfério Sul, com a Índia à frente, fecharam questão para impedir qualquer avanço em matéria de normas sociais e ambientais

Dá para entender por que as noções de soberania e de segurança alimentar8, defendidas pelas organizações camponesas de 70 países reunidos na Via Campesina (na França, a Confédération Paysanne), não encontram ouvidos entre os dirigentes de seus países. Assim como a posição da União Européia que, sob pressão da França – ela própria pressionada pelo poderoso lobby da Federação Nacional dos Sindicatos Agrícolas (FNSEA) e dos organismos que esta controla –, reafirmou a defesa dos subsídios às exportações (que os Estados Unidos também praticam de outra forma). Esses subsídios são verdadeiros prêmios ao agrobusiness e à destruição das agriculturas camponesas de todos os países, inclusive os do hemisfério Norte.

A lição a tirar é que não se deve confundir os interesses dos países do Sul com as posições de seus governos que, de pés e mãos atados pelo FMI, são muitas vezes meros porta-vozes das oligarquias, dos exportadores locais e das multinacionais estrangeiras instaladas em seus territórios. A segunda lição é que o cancelamento da dívida pública dos países em desenvolvimento é o único meio de baixar a pressão do lema “exportar para viver” ao qual estão submetidos pelas instituições financeiras internacionais. Suas economias poderiam ser facilmente reorientadas para satisfazer a demanda interna, em primeiro lugar alimentar, e para impor, de forma progressiva, normas sociais e ambientais discutidas sem que seja sistematicamente desfraldada a bandeira vermelha do “protecionismo”.

As contradições de George Bush

É bom não esquecer a frase de Mahatma Gandhi, quando foi preso em 1942: “Jamais existirá igualdade e liberdade entre dois parceiros desiguais”

Assim como a noção de “terrorismo”, as noções de “protecionismo” e de “livre-câmbio” não são claramente definidas. Após descrever os manifestantes de Gênova, em julho de 2001, como um “bando de baderneiros”, George Bush declarou que “quem for contra o livre-comércio, é contra os pobres”. Esse evangelismo lembra o fervor fanático do primeiro governador de Hong Kong, e grande industrial britânico da indústria têxtil, sir John Bowring: “Jesus Cristo é o livre-comércio; o livre-comércio é Jesus Cristo9”. Isto acontecia nos anos 1840, na Grã-Bretanha, no apogeu do movimento da livre iniciativa contra as leis protecionistas sobre o trigo, de 1815 (Corn Laws), finalmente revogadas em 1846 pelo primeiro-ministro Robert Peel. Mas a Índia, colônia que estaria concorrendo com a produção têxtil da metrópole em seu mercado interno, não teve direito a essa “liberdade” do comércio, o que provocou a destruição desse setor industrial no subcontinente. Lembremos, a esse respeito, a frase de Gandhi, quando foi preso em 1942: “Jamais existirá igualdade e liberdade entre dois parceiros desiguais”.

Dois dados são bastante explícitos sobre o “livre-comércio”. Os países capitalistas avançados dedicam, anualmente, 360 bilhões de dólares à proteção de sua agricultura e 450 bilhões de dólares à proteção de sua indústria, ou seja, 810 bilhões de dólares. Não se trata de um montante aplicado uma única vez, mas de um eldorado permanente. Como é possível ter a hipocrisia de exaltar as benfeitorias paradisíacas de um sistema multilateral de liberdade de comércio diante de um intervencionismo estatal que se traduz por subsídios tão astronômicos? Joseph Stiglitz vai fundo, quando declara, visando diretamente a George Bush – que se disse tentado a fechar o mercado norte-americano às importações de produtos siderúrgicos procedentes da Ásia e da Europa Oriental, para salvar os produtores norte-americanos de aço: “É impossível deixar de se questionar quando alguém diz que acredita no livre-comércio e na economia de mercado e em seguida anuncia a intenção de criar um cartel do aço.”

A lógica da concorrência

Não se deve confundir os interesses dos países do Sul com as posições de seus governos que, de pés e mãos atados pelo FMI, são meros porta-vozes das oligarquias

É fundamental compreender-se que esses 810 bilhões de dólares constituem apenas um dos elementos da máquina de guerra abertamente protecionista dos países desenvolvidos. O Departamento do Comércio norte-americano e seu dispositivo de espionagem comercial (inclusive o sistema Echelon e a National Security Agency10) incentivam entendimentos entre grupos oficialmente concorrentes para conquistarem novos mercados externos. A situação é a mesma nos outros países industrializados onde se concentram as sedes das 200 mais importantes empresas do mundo. Às vésperas da conferência de Doha, o Banco Mundial anunciou alegremente que a supressão dos obstáculos ao comércio (a livre troca) aumentaria a riqueza mundial em cerca de 2,8 trilhões de dólares por volta de 2015, e arrancaria 320 milhões de pessoas do limiar de pobreza. Sem se estender muito sobre a falta de rigor cientifico dos cálculos que levaram a estes números, deve ser assinalado, conforme mostram os estudos do economista suíço Paul Bairoch, que não existe qualquer correlação histórica entre o crescimento do comércio e da riqueza mundial.

Aliás, supondo que sejam eliminadas todas as barreiras protecionistas, em que isso diminuiria o poder das 200 empresas multinacionais que mandam no mundo? A concorrência mata a concorrência, da mesma forma que um capitalista elimina outro. A concorrência e o monopólio não são pólos antagonistas: o domínio monopolista está inscrito dentro da própria lógica da concorrência.
(Trad.: David Catasiner)

1 - International Herald Tribune, Paris, 16 de novembro de 2001.
2 - International Herald Tribune, Paris, 16 de novembro de 2001.
3 - International Herald Tribune, Paris, 16 de novembro de 2001.
4 - Financial Times, Londres, 16 de novembro de 2001.
5 - Ler, de José Bové, François Dufour, Yannick Jadot e Bruno Rebelle, “Oublier Doha”, Le Monde, 23 de novembro de 2001.
6 - Ler, de Christian de Brie, “Comment l’AMI fut mis em pièces” e “Rumo a um novo AMI”, Le Monde diplomatique, respectivamente dezembro de 1998 e dezembro de 2000.
7 - Ler, de Agnès Sinaï, “A força dos lobbies industriais”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001.
8 - As duas noções não são idênticas. A segurança alimentar diz respeito à conquista da auto-suficiência e à indenpendência em matéria de abstecimento. A soberania alimentar subentende o direiro de aceitar ou recusar importações, desde que estas tenham efeitos destrutivos (Ler Campagnes solidaires, revista mensal da Confédération paysanne, Bagnolet, outubro de 2001.)
9 - Citado por Karl Marx, Miséria da filosofia, Paris, 1847.
10 - Ler, de Nicky Hager, “A história secreta da NSA”, Le Monde diplomatique, novembro de 2001.




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